A mais doce
das reacionárias
O escritor e biógrafo
Lira Neto relembra entrevista
de 1992 com Rachel de Queiroz
Ainda jovem repórter,
Lira Neto reconta o encontro com Rachel de Queiroz em 1992
Eu começara a trabalhar
no jornal havia dois anos. Naquela manhã, recebera a pauta, de meu editor
Ricardo Jorge, com um misto de euforia e apreensão. Havia sido escalado para
entrevistar Rachel de Queiroz, então prestes a lançar o que viria a ser seu
último romance. O entusiasmo só não era maior do que a consciência da
responsabilidade.
Para mim, Rachel era
entidade quase mítica. Lera seus livros desde os tempos de menino. Alguns por
exigência escolar, outros, por opção de jovem leitor que cedo mergulhara nos
mistérios da literatura. Primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de
Letras, dona de vasta obra, Rachel também me chamava a atenção pelas posições
políticas, historicamente oscilantes entre o comunismo inicial e o posterior
apoio ao governo ditatorial pós-64.
Dividido entre a
excitação de repórter novato e a gravidade do encargo, fui ao seu encontro,
companhado de Fernando Sá, fotógrafo que compunha a extraordinária equipe do
Vida&Arte. Ela nos recebeu em um apartamento na Praia do Futuro. Trajava
vestido azul-claro de bolinhas brancas e usava colar de pérolas pequeninas,
combinação que adotara quase como marca registrada. Ofereceu-nos café, tapioca
e bolo de laranja.
Saí da conversa
encantado com Rachel. Ao invés do monstro sagrado da literatura, conheci uma
mulher acessível, bem-humorada, sarcástica consigo mesmo. Embora, na ocasião,
tenha se definido como incorrigível "anarquista", passei a tratá-la
como "a mais doce das reacionárias".
Até hoje guardo a foto
daquele encontro. Rachel se foi. Minha barba ficou grisalha, meus cabelos
rarearam. Mas, duas décadas e meia depois, suas palavras relativas ao Brasil da
época revestem-se de incômoda atualidade. "Sou uma pessoa pessimista e
nunca espero pelo melhor", disse-me.
Eu também, Rachel, eu também.
Lira Neto foi jornalista do Vida&Arte e é autor de
livros, como Getúlio e Uma história do samba.
FONTE VIDA & ARTE – O POVO (05/11/2018)
LEIA TAMBÉM: https://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2018/11/rachel-e-lira-um-encontro.html
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