segunda-feira, 5 de novembro de 2018

RACHEL E LIRA NETO


A mais doce das reacionárias
O escritor e biógrafo Lira Neto relembra entrevista 

de 1992 com Rachel de Queiroz



Ainda jovem repórter, Lira Neto reconta o encontro com Rachel de Queiroz em 1992

Eu começara a trabalhar no jornal havia dois anos. Naquela manhã, recebera a pauta, de meu editor Ricardo Jorge, com um misto de euforia e apreensão. Havia sido escalado para entrevistar Rachel de Queiroz, então prestes a lançar o que viria a ser seu último romance. O entusiasmo só não era maior do que a consciência da responsabilidade.

Para mim, Rachel era entidade quase mítica. Lera seus livros desde os tempos de menino. Alguns por exigência escolar, outros, por opção de jovem leitor que cedo mergulhara nos mistérios da literatura. Primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, dona de vasta obra, Rachel também me chamava a atenção pelas posições políticas, historicamente oscilantes entre o comunismo inicial e o posterior apoio ao governo ditatorial pós-64.

Dividido entre a excitação de repórter novato e a gravidade do encargo, fui ao seu encontro, companhado de Fernando Sá, fotógrafo que compunha a extraordinária equipe do Vida&Arte. Ela nos recebeu em um apartamento na Praia do Futuro. Trajava vestido azul-claro de bolinhas brancas e usava colar de pérolas pequeninas, combinação que adotara quase como marca registrada. Ofereceu-nos café, tapioca e bolo de laranja.

Saí da conversa encantado com Rachel. Ao invés do monstro sagrado da literatura, conheci uma mulher acessível, bem-humorada, sarcástica consigo mesmo. Embora, na ocasião, tenha se definido como incorrigível "anarquista", passei a tratá-la como "a mais doce das reacionárias".

Até hoje guardo a foto daquele encontro. Rachel se foi. Minha barba ficou grisalha, meus cabelos rarearam. Mas, duas décadas e meia depois, suas palavras relativas ao Brasil da época revestem-se de incômoda atualidade. "Sou uma pessoa pessimista e nunca espero pelo melhor", disse-me.

Eu também, Rachel, eu também.
Lira Neto foi jornalista do Vida&Arte e é autor de livros, como Getúlio e Uma história do samba.

FONTE VIDA & ARTE – O POVO (05/11/2018)

LEIA TAMBÉM: https://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2018/11/rachel-e-lira-um-encontro.html


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