Como Euclides da Cunha
criou
o mito do sertão em sua obra-prima
Mesmo não havendo nascido no sertão de que trata em sua obra,
Euclides foi quem mais contribuiu para estabelecer o modelo de semiárido
habitado por bárbaros
Ronaldo Correia de Brito*, Especial para o Estado
Euclides da Cunha será o homenageado da Flip 2019. Nada mais
justo. No ensaio Euclides da Cunha:
Revelador da Realidade Brasileira, Gilberto Freyre já o referia como um dos
escritores brasileiros de maior influência sobre o nosso povo, e que chamava
atenção dos estrangeiros para a cultura em geral e para as letras em
particular, de um ainda obscuro Brasil.
Página de rosto de OS SERTÕES
Mesmo não havendo nascido no sertão de que trata em sua obra,
Euclides foi quem mais contribuiu para codificar o que lhe pareceu sertão,
guiando leitores e gerações futuras a buscarem o modelo estabelecido de
semiárido habitado por bárbaros, num processo semelhante ao dos orientalistas
em relação ao Oriente. Da mesma maneira que o Oriente é corrigido e penalizado
por estar fora dos limites da Europa e América do Norte, o sertão do Nordeste
brasileiro sofre processo semelhante por se encontrar fora dos limites da
sociedade do Sul e Sudeste. É igualmente “sertanizado” por acadêmicos e
cientistas, tornando-se propriedade de um conhecimento nem sempre
verdadeiro.
A partir do genocídio praticado contra os conselheiristas de
Canudos – recuso a denominação de jagunços –, retratado com parcialidade pelo
geógrafo, engenheiro, militar e jornalista, se evidenciam as incompatibilidades
entre os vários sertões. As sociedades heterogêneas possuem valores culturais,
econômicos e religiosos desiguais. Os sertanejos são tratados como menores,
raças submetidas a um “poder civilizatório” que se apresenta benigno e
altruísta, mas que traz apenas mais miséria, destruição e morte. Acontece a
guerra, uma coisa horrível de se testemunhar, um choque implacável,
irremediável, como tem sido o embate de todos os dias, no Brasil.
Nos primeiros tempos de nossa história, tudo o que não fosse
litoral era sertão, independente de condições climáticas, relevo, cobertura
vegetal, presença ou não de rios, tipo de solo. Assim, o Estado de São Paulo
para além da Capitania de São Vicente era todo sertão, como também o eram
Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e até Paraná e Rio Grande do
Sul.
O próprio Euclides descreve diferente o sertão dos primórdios
da nossa colonização: “Constituiu-se, dessa maneira favorecida, a extensa zona
de criação de gado que já no alvorecer do século 18 ao das raias setentrionais
de Minas e Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e
norte, e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera
autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo
esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e
vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessassem ao egoísmo da
coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às
aventuras das minas, ‘o quase único aspecto tranquilo da nossa cultura’. À
parte os contingentes de povoadores pernambucanos e baianos, a maioria dos
criadores opulentos que ali se formaram, vinha do sul, constituída pela mesma
gente entusiasta e enérgica das bandeiras.”
As migrações e entrelaçamentos dos sertanejos se fazia
intensa, de sul a norte e de norte a sul, a ponto de um decreto real do século
18 proibir que os do norte buscassem as terras do sul, onde havia mais
promessas de riqueza. “Paulista” não se referia apenas aos naturais de São
Paulo, sendo uma denominação genérica para sertanejos de Goiás, Mato Grosso,
Minas e outras regiões. Interessa investigar quando e de que maneira o devaneio
sobre o que é sertão o transforma em paisagem semiárida, hostil, com o sol
inclemente, confundido com o que se estabeleceu ser o Nordeste. Gilberto Freyre
recusa essa imagem de deserto. Para ele, o lugar também é uma terra de fartura,
de águas abundantes, onde, como no poema de Carlos Pena Filho, “nunca deixa de
haver uma mancha d’água, um avanço de mar, um rio, um riacho, o esverdeado de
uma lagoa...”
Não sei ainda quais convidados irão debater Os Sertões, mas
espero que haja alguns escritores nordestinos, conselheiristas e intelectuais
que enxergam os erros de Euclides, a antropologia e a sociologia impregnadas de
cientificismo, consonante com a época em que o livro foi escrito. Teorias de
inspiração europeia e americana, racistas, supremacistas, cientificistas, que
defendem a eugenia e são contrárias ao hibridismo, atribuindo ao cruzamento das
raças formadoras do Brasil todos os nossos males.
Riobaldo, personagem narrador do Grande Sertão: Veredas,
pergunta ao escutador: “Como vou contar e o senhor sentir em meu estado? O
senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo?” A pergunta não precisaria ser
feita ao carioca Euclides da Cunha, nem a qualquer intelectual que se
aventurasse a escrever sobre o episódio de Canudos, desde que mantivesse
isenção e imparcialidade. Por mais que tenha estudado a geografia, a história,
a cartografia, a formação do lugar e do homem sertanejo, Euclides olha de fora,
se dói de fora, denuncia de fora e, na hora do julgamento final, toma um
partido: “Não tive o intuito de defender os sertanejos, porque este livro não é
um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque”. Diferente de Guimarães falando
através de Riobaldo Tatarana: “O sertão me produziu, depois me engoliu, depois
me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?”
Euclides nunca se avistou com o Conselheiro, nunca
entrevistou-o em conversa de homens pisando mundos diferentes. Do beato, viu o
resultado do exame realizado pelo médico Nina Rodrigues, partidário da
pseudociência da frenologia, que defendia que a estrutura do crânio determinava
o caráter das pessoas e sua capacidade mental. Responsável por equívocos e
crimes, o exame frenológico foi realizado na cabeça do beato, concluindo-se
pela normalidade do mesmo, o que só expõe a barbárie e o abuso da ciência da
época.
Na nota
preliminar à primeira edição de Os Sertões, Euclides assume postura sobre o
lugar e os personagens da sua epopeia:
"Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de
futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças
sertanejas do Brasil, e fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexo de
fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas
e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras,
destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da
civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que
começam a invadir nossa terra.”
Apesar das denúncias feitas e registradas, da comoção diante
do massacre, de afirmar que o sertanejo é antes de tudo um forte, Euclides se
mantém firme, como observa Leopoldo M. Bernucci: “O narrador toma partido na
defesa dos conselheiristas, mas a escolha final, a que determina
verdadeiramente a decisão inexorável de combater o fanatismo religioso, a
‘selvatiqueza épica’, em uma palavra, os nossos ‘bárbaros patrícios’, recai nas
mãos de um juiz implacável. E nem mesmo o esforço para construir uma frase
imparcial e justa, que defina o seu duplo ataque, aos sertanejos e aos
‘singularíssimos civilizados’ nas Notas à 2ª Edição, consegue no final
retraí-lo da sua cega fidelidade ideológica ao republicanismo progressivo.”
Os Sertões prevaleceu como obra monumental pela sua
linguagem, mesmo que Euclides tenha escrito “num estilo não só barroco –
esplendidamente barroco – como perigosamente próximo do precioso, do pedante,
do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum
desses perigos. Deixando-se apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus
excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos
de má eloquência que o teriam levado à desgraça literária e ao fracasso
artístico”, como anotou Freyre.
Lamentarei se o tom da homenagem a Euclides da Cunha, na
Flip, for somente apologista. Vou convencer-me de que a etiqueta com que
rotularam os sertanejos continua valendo.
O tempo passou, mas o modelo de violência da nossa sociedade
permanece o de sempre, desde a colônia. A República defendida por Euclides
nunca se consolidou. Nem mesmo a democracia. Soldados e conselheiristas se
irmanam. Os que restam vivos, ao retornarem às cidades grandes, irão morar em
morros ou periferias que receberão o nome de favelas, em memória às favelas de
Canudos. A história se refaz e se complementa. Agora os “civilizados” tomam o
lugar da sub raça, e passam também a ser exterminados. O sertão se desloca com
os homens, sem a liderança social ou espiritual do Conselheiro. Seu novo lugar
na periferia das cidades grandes representa um risco maior do que o Arraial de
Canudos. A guerra se mantém: sistemática, predatória, manipulada. Irmãos contra
irmãos. E os poderosos jogam com os mesmos princípios do início da colonização
e sempre ganham.
*RONALDO CORREIA DE BRITO É AUTOR DE ‘DORA SEM VÉU’
(ALFAGUARA, 2018)
Fonte: ESTADÃO
Link: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,como-euclides-da-cunha-criou-o-mito-do-sertao-em-sua-obra-prima,70002868280?utm_source=estadao%3Afacebook&utm_medium=link&fbclid=IwAR3RIUGhw7xLLFoWhZdEjf_nCoeFF5UJ3Xyc-1k2J1oALs2jxDI6BhWfwx8
Fonte: ESTADÃO
Link: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,como-euclides-da-cunha-criou-o-mito-do-sertao-em-sua-obra-prima,70002868280?utm_source=estadao%3Afacebook&utm_medium=link&fbclid=IwAR3RIUGhw7xLLFoWhZdEjf_nCoeFF5UJ3Xyc-1k2J1oALs2jxDI6BhWfwx8
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