LAMPIÃO: 121 ANOS DO NASCIMENTO DO
BRUTAL REI DO CANGAÇO
(Fonte: Revista AVENTURAS NA
HISTÓRIA)
Por LIRA NETO
Eles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal,
de até 80 centímetros de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base
da clavícula – a popular “saboneteira” – da vítima. A lâmina pontiaguda cortava
a carne, seccionava artérias, perfurava o pulmão, trespassava o coração e, ao
ser retirada, produzia um esguicho espetaculoso de sangue. Era um policial ou
um delator a menos na caatinga – e um morto a mais na contabilidade do cangaço.
Quando não matavam, faziam questão de ferir, de mutilar, de
deixar cicatrizes visíveis, para que as marcas da violência servissem de
exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em forma de cruz na testa de
homens, desfiguravam o rosto de mulheres com ferro quente de marcar o gado.
Exatos 80 anos após a morte do principal líder do cangaço,
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, a aura de heroísmo que durante algum
tempo tentou-se atribuir aos cangaceiros cede terreno para uma interpretação
menos idealizada do fenômeno. Uma série de livros, teses e dissertações
acadêmicas lançados nos últimos anos defende que não faz sentido cultuar o mito
de um Lampião idealista, um revolucionário primitivo, insurgente contra a
opressão do latifúndio e a injustiça do sertão nordestino.
Virgulino não seria um justiceiro romântico, um Robin Hood da
caatinga, mas um criminoso cruel e sanguinário, aliado de coronéis e grandes
proprietários de terra. Historiadores, antropólogos e cientistas sociais
contemporâneos chegam à conclusão nada confortável para a memória do cangaço:
no Brasil rural da primeira metade do século 20, a ação de bandos como o de
Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos traficantes de drogas que hoje
sequestram, matam e corrompem nas grandes metrópoles do país. Guardadas as
devidas proporções, o cangaço foi algo como o PCC dos anos 1930.
Corisco e Dadá (Reprodução)
Cangaceiros e
traficantes
Foram os cangaceiros que introduziram o sequestro em larga
escala no Brasil. Faziam reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes.
Caso não recebessem o resgate, torturavam e matavam as vítimas, a tiro ou
punhaladas. A extorsão era outra fonte de renda. Mandavam cartas, nas quais
exigiam quantias astronômicas para não invadir cidades, atear fogo em casas e
derramar sangue inocente.
Ofereciam salvo-condutos, com os quais garantiam proteção a
quem lhes desse abrigo e cobertura, os chamados coiteiros. Sempre foram
implacáveis com quem atravessava seu caminho: estupravam, castravam,
aterrorizavam. Corrompiam oficiais militares e autoridades civis, de quem
recebiam armas e munição. Um arsenal bélico sempre mais moderno e com maior
poder de fogo que aquele utilizado pelas tropas que os combatiam.
“A violência é mais
perversa e explícita onde está o maior contingente de população pobre e excluída.
Antes o banditismo se dava no campo; hoje o crime organizado é mais evidente na
periferia dos centros urbanos”, afirma a antropóloga Luitgarde Oliveira
Cavalcanti Barros, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
autora do livro A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão.
A professora aponta semelhanças entre os métodos dos
cangaceiros e dos traficantes: “A maioria dos moradores das favelas de hoje não
é composta por marginais. No sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas,
nos dois casos, a população honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime de
terror imposto pelos bandidos, que ditam as regras e vivem à custa do medo
coletivo”.
Além do medo, os cangaceiros exerciam fascínio entre os
sertanejos. Entrar para o cangaço representava, para um jovem da caatinga,
ascensão social. Significava o ingresso em uma comunidade de homens que se
gabavam de sua audácia e coragem, indivíduos que trocavam a modorra da vida
camponesa por um cotidiano repleto de aventuras e perigos.
Era uma via de acesso ao dinheiro rápido e sujo de sangue,
conquistado a ferro e a fogo. “São evidentes as correlações de procedimentos
entre cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor, são velhos
professores e modernos discípulos”, afirma o pesquisador do tema Melquíades
Pinto Paiva, autor de Ecologia do Cangaço e membro do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro.
Homem e lenda
Virgulino Ferreira da Silva reinou na caatinga entre 1920 e
1938. A origem do cangaço, porém, perde-se no tempo. Muito antes dele, desde o
século 18, já existiam bandos armados agindo no sertão, particularmente na área
onde vingou o ciclo do gado no Nordeste, território onde campeava a violência,
a lei dos coronéis, a miséria e a seca. A palavra cangaço, segundo a maioria
dos autores, derivou de “canga”, peça de madeira colocada sobre o pescoço dos
bois de carga. Assim como o gado, os bandoleiros carregavam os pertences nos
ombros.
Um dos precursores do cangaço foi o lendário José Gomes, o
endiabrado Cabeleira, que aterrorizou as terras pernambucanas por volta de
1775. Outro que marcou época foi o potiguar Jesuíno Alves de Melo Calado, o
Jesuíno Brilhante (1844-1879), famoso por distribuir entre os pobres os
alimentos que saqueava dos comboios do governo. Mas o primeiro a merecer o
título de Rei do Cangaço, pela ousadia de suas ações, foi o pernambucano
Antônio Silvino (1875-1944), o Rifle de Ouro. Entre suas façanhas, arrancou os
trilhos, perseguiu engenheiros e sequestrou funcionários da Great Western, empresa
inglesa que construía ferrovias no interior da Paraíba.
Lampião sempre afirmou que entrou na vida de bandido para
vingar o assassinato do pai. José Ferreira, condutor de animais de carga e
pequeno fazendeiro em Serra Talhada (PE), foi morto em 1920 pelo sargento de
polícia José Lucena, após uma série de hostilidades entre a família Ferreira e
o vizinho José Saturnino.
No sertão daquele tempo, a vingança e a honra ofendida
caminhavam lado a lado. Fazer justiça com as próprias mãos era considerado
legítimo e a ausência de vingança era entendida como sintoma de frouxidão
moral. “Na minha terra,/ o cangaceiro é leal e valente:/ jura que vai matar e
mata”, diz o poema “Terra Bárbara”, do cearense Jáder de Carvalho (1901-1985).
(...)
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