quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Manuel Bandeira e Quixeramobim



SAUDADES DE QUIXERAMOBIM

Manuel Bandeira*

O cabeçalho desta crônica mais parece título de alguma valsinha. Aliás, se eu tivesse bossa para a música, gostaria de compor três valsinhas – Saudades de campanha, Saudades de Teresópolis e Saudades de Quixeramobim. Poria num chinelo a Antógenes Silva com as suas Saudades de Ouro Preto e Saudades de Uberaba, essas duas delícias.

Creio que as saudades de Quixeramobim não são as que mais doem. Como me doem as de Paris. Porque a verdade é que não estive em Paris: estive durante três dias num quarto de hotel na Rua Balzac. Do mesmo modo, não estive em Quixeramobim: estive durante uns meses num sobradão da praça principal da cidade, em frente à velha matriz, e se estou batendo esta crônica de saudade é porque vi n’O Cruzeiro** de umas semanas atrás uma fotografia do templo, não como é agora, desfigurado pela restauração, mas como era ainda em 1908.


Os dois veteranos pardieiros, a igreja e o meu sobrado, pareciam as duas personagens de um apólogo dialogal. Dois fantasmas. A casa dava fundos para o rio, de sorte que, logo que eu cheguei, fui à janela ver o rio. Foi uma grande lição de geografias: não havia rio nenhum: O Quixeramobim estava seco, seco; o que eu vi foi um areal, branco como uma praia, sobre o qual se arqueava a enorme ponte de estrada de ferro. E nesse areal várias cacimbas. O sobrado, que tinha um ar de mal-assombrado, era de tantas e tão espaçosas peças, que a matuta que levei para lá como cozinheira se perdia nele e um dia me disse, atarantada, que não sabia navegar naquela casa, não!

Eu vivia encantoado na sala da frente, que de um oitão a outro, com várias sacadas para o largo, mobiliada (atenção, revisor: não ponha “mobilada”, que é uma palavra que eu detesto!) com uma cama-de-vento, uma cadeira e um lavatoriozinho de ferro.

De vez em quando morria um cidadão de Quixeramobim e o sino grande da matriz entrava a dobrar. Era formidável. Sino de Quixeramobim, baterás por mim? Dizia eu comigo pressagamente. Quantas vezes, a horas diversas, chegava eu a uma das sacadas de frente e ficava a olhar a velha igreja! Onde nunca entrei e hoje tenho pena. Tudo isso virou saudade e sinto grandemente não ter bossa para escrever a valsinha que a exprimisse bem no estilo amolescente de Antenógenes Silva.


* A crônica Saudades de Quixeramobim, de Manuel Bandeira( 1886/1968), escrita em 1956, faz parte da coletânea de crônicas do autor pernambucano publicada, em 1957, no livro Flauta de Papel – Coleção Cronistas do Brasil. O grande poeta brasileiro relembra os dias em que esteve na cidade cearense (também passou curta temporada em Maranguape e Uruquê), em 1908, em busca de clima apropriado para tratar de tuberculose, doença que o atormentou até a morte.

(Eliézer Rodrigues, revista Singular)



** Abaixo, veja fac-símile das páginas da revista O CRUZEIRO, onde o cearense Gustavo Barroso escreveu um belo artigo sobre a vetusta matriz de Quixeramobim.







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