quinta-feira, 3 de maio de 2018

COZINHA SERTANEJA


A COZINHA SERTANEJA NA CRÔNICA DE RACHEL DE QUEIROZ

Quem resiste a uma boa tapioca com queijo e café? Quem abre mão de uma pamonha salgada ou de um prato de canjica? E paçoca de carne seca pisada no pilão, com cebola roxa e farinha? Isso para não falar da coalhada, do queijo de coalho espremido na velha prensa de madeira, dos doces de leite, mamão e caju, da costelinha de carneiro assada na brasa e outra infinidade de pratos típicos que, infelizmente, vão desaparecendo dia após dia e cedendo lugar aos enlatados, às massas, aos embutidos e outros alimentos de alto teor cancerígena. Numa região como a nossa - o Sertão Central - onde a a incidência do câncer é altíssima, as pessoas deveriam rever sua alimentação e retomar os velhos hábitos alimentares de nossos antepassados.
É por isso que eu costumo dizer... Quem tiver sua pizza, seu macarrão de forno, seu sanduíche reforçado, seu suco de caixa cheio de conservantes e aromatizantes, não esconda de mim. Sou mais um prato de baião de dois com paçoca, carne assada e queijo de coalho feito aqui mesmo, nos sertões de Madalena e Quixeramobim.  
Publicamos, a seguir, o texto integral de uma crônica de Rachel de Queiroz veiculada no jornal FOLHA DE SÃO PAULO, onde ela traz um retrato perfeito da culinária das fazendas de nossa região. 


(Júlio Vieira)


Baião-de-dois com carne assada, cebola roxa, queijo de coalho, macaxeira e rapadura. 
É quase um BAIÃO DE DEZ!

COZINHA SERTANEJA
Rachel de Queiroz


Uma literatura que os grandes nomes do Brasil pouco cuidaram foi a que diz respeito à culinária, com exceção – e que exceção! – Gilberto Freire. Gilberto como que notabilizou o tema; fugiu à clássica cozinha portuguesa adaptada e fugiu, principalmente à obrigatória cozinha baiana. Verdade que ele tratava da maior rival da cozinha baiana, que é a de Pernambuco. E nesse Pernambuco incluam-se as cozinhas adjacentes, subindo até o Ceará. Do Piauí para cima a cozinha já é outra e muito menos europeia do que a pernambucana.


Doce de caju em calda, saboroso manjar da nossa culinária nativa

Ouso dizer que no Recife, principalmente, e Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, comem-se com fidelidade as receitas das senhoras donas, nossas avós. Ainda hoje discuto com as primas se a galinha de cabidela deve ser servida com angu de milho ou com pirão do próprio caldo. (Eu, aliás, sou pela segunda versão.) A cozinha da Fazenda Califórnia, onde reinava a minha avó d. Rachel, era como cozinha detestada por nós, crianças. Dizíamos entre nós que era feita na base da pimenta-do-reino com carne de porco, pimenta-do-reino com cabidela. Pimenta-do-reino acima de tudo. Evidentemente exagerávamos. Mas que a comida da Califórnia tinha pimenta-do-reino demais, tinha. A nossa sorte é que a comandante do fogão, a saudosa Madinha, tinha sempre umas panelinhas separadas onde havia pouco sal e nenhuma pimenta, reservadas para nós. Mas isso era feito discretamente, pois um dos lemas da nossa avó era não permitir luxo de criança à mesa. Criança de mais de 4 anos, culinariamente falando, era, à mesa, absolutamente igual aos adultos.
E o que se comia na Califórnia? Basicamente, entre as carnes, galinha, carneiro e peru assado em dia de festa, no mais, feijão de arrancar (feijão de corda só era feito para a cozinha), pirão de ovos, farofa, alguma couve cozida no feijão. E quando era tempo, maxixe, também por nós detestado. Na verdade o que a gente gostava mesmo era de coxa de galinha, especialmente as tostadas no forno. Macarrão, não sei por que, sempre grudento e malfeito, era igualmente prato obrigatório, junto com o arroz e o feijão. Como se vê, o cardápio nas fazendas sertanejas não era rico nem variado, mas isso apenas no que se refere às chamadas comidas de sal. Porque nas sobremesas eram a glória. Doce de tudo em massa ou em calda, tão disputado que quase sempre as merendas acabavam entre empurrões e disputas da compoteira em que restavam os últimos cajuzinhos e aquela inimitável caldinha no fundo, onde boiavam pedacinhos de caju.
De modo geral, a cozinha sertaneja não é rica quanto aos salgados. Mas muito rica em doces e sobremesas: coalhadas, bolos de infinitas variedades, arroz-doce, aletria, broas de goma. Ganhava a festa a produtora do melhor bolo apresentado. Copiavam-se as receitas, de mão em mão, e podia-se jurar que na mesa de domingo, da maioria delas, apareceria uma cópia do bolo ou do doce que fora copiado. Claro que em fazendas como a Califórnia, a Junco e outras, o mais importante como contingente alimentar eram os queijos. Basicamente o queijo de coalho, salgado, feito em fôrmas numa prensa; quem conseguia ser o encarregado de apertar o queijo no chincho era sempre o vencedor de uma espécie de batalha campal entre irmãos e primos. Esse vitorioso adquiria o direito de comer as deliciosas aparas laterais do queijo que, confesso, ainda recordo com água na boca. Quase todas as fazendas se empenhavam na produção do queijo de coalho. Os requeijões e especialmente os queijos-de-manteiga são luxo de mesa rica. Já o queijo de coalho não falta na mesa de quem possua no curral ao menos duas a três vacas paridas. Tudo isso se inclui na expressão genérica “comer leite”.


Queijo de coalho. No Sertão Central, a forma retangular é mais comum

Doce de leite é o requinte mais comum como laticínio. Atualmente, faz-se pouco queijo, pois a melhoria dos transportes facilitou muito a venda de leite in natura. Há atravessadores que levam os seu caminhãozinho de fazenda em fazenda, para os vendedores de leite na cidade.
Vacas de leite são, pois, a porção mais valiosa do rebanho. O pequeno proprietário só se considera “rico” quando possui algumas vacas de leite. A vaca é o último item que se vende no tempo ruim ou numa grande precisão. Além do valor intrínseco, dela depende literalmente o que até se chama “o leite das crianças”. Alguém que venda o leite, privando dele os de casa, é considerado um desprezível avarento.
De modo geral, as mães quando desmamam os filhos dão uma explicação suscinta: “Tirei do meu peito pro da cabra”, se ela é pobre, se tem mais posses, tira pro da vaca.


A seguir, imagens em fac-símile da crônica de Rachel de Queiroz chamada COZINHA SERTANEJA, publicada na FOLHA DE SÃO PAULO. Fonte: http://antiguinho.blogspot.com.br



Nenhum comentário:

Postar um comentário

CARIRI CANGAÇO

Adiado o CARIRI CANGAÇO de Paulo Afonso-BA NOTA OFICIAL Diante do atual quadro de Pandemia do Covid-19 que assola nossa Naçã...

Pesquisar este blog