quarta-feira, 23 de maio de 2018

LITERATURA CEARENSE


Tigipió - Livro de Contos do cearense HERMAN LIMA



HERMAN LIMA, UM ESCRITOR ESQUECIDO

Alguém já ouviu falar de HERMAN LIMA, escritor cearense nascido em Fortaleza, aos 11 de maio de 1897? Seu centenário, em 1997 foi completamente esquecido, mas três anos depois o jornal O POVO fez o resgate de uma entrevista realizada com o autor de TIGIPIÓ, livro de contos premiado pela Academia Brasileira de Letras. Vejamos o texto publicado no Jornal O POVO 04/01/2000:



Medalha comemorativa dos 50 anos de TIGIPIÓ


Conversando com Herman Lima

Precisou ser comemorado o seu centenário, há dois anos, para que alguns jornais se redimissem do esquecimento que atribuíram ao escritor Herman Lima. No O POVO essa tarefa coube ao advogado e bibliófilo José Bonifácio Câmara, em textos produzidos para o caderno Sábado.

Cearense nascido ainda no século passado, em Fortaleza, com passagens pela Bahia, Rio de Janeiro e Inglaterra, Herman viveu as grandes secas no Ceará, que marcaram sua vida e sua obra. Autor de Tigipió, Na Ilha de John Bull e Poeira do Tempo, entre outros, o escritor conseguiu firmar seu nome entre os grandes regionalistas brasileiros. No entanto, foi com uma vasta pesquisa sobre a caricatura no Brasil que ele ganhou fama. A História da Caricatura no Brasil, publicado nos anos 60, é considerado até hoje o mais completo registro da memória do traço brasileiro - tido pelo poeta Carlos Drummond de Andrade como a obra definitiva do gênero. Trabalhador infatigável, no entender de Bonifácio Câmara, Herman Lima escreveu até lhe faltar a visão, vindo a falecer em 21 de junho de 1981, pouco menos de um ano após o desaparecimento da esposa. Mas foi bem antes disso, em julho de 1941, que O POVO lhe dedicou a entrevista a seguir, na qual o escritor relembra passagens de sua vida e arrisca um "balanço moral". É uma boa oportunidade, portanto, para a memória de nossa literatura – lembrança para alguns, descoberta para outros.

Fomos encontrar Herman Lima em sua casa no Leblon, rodeado de livros, ultimando a tradução do romance inglês "Together and apart", que a Livraria José Olímpio Editora vai publicar com o título de "O irreparável engano".

O autor de "Na Ilha de John Bull" diz maravilhas desse romance, que na sua opinião vai empolgar o nosso público.

- Não fosse um livro de primeira água - diz ele de início - e não me abalançaria a traduzi-lo, sendo obrigado a pôr de lado tanta coisa que tenho a fazer atualmente: acabar meu segundo livro de viagens, escrever sobre dois ou três escritores ingleses e principalmente dar começo à minha idéia mais cara no momento: uma série de artigos sobre artes plásticas, da antigüidade à hora atual. Nada de transcendente - bem se vê, mas uma contribuição cultural que julgo aproveitável ao nosso povo, com dados biográficos, notas críticas e copiosa reprodução fotográfica de quadros e esculturas.

Suas atividades parecem assim voltadas para um setor novo, e é o que ele confirma, dando a entender que não pensa mais, pelo menos por enquanto, em reingressar no campo da ficção.

Enquanto conversamos, suas filhinhas aproximam-se de vez em quando, para pedirem ao pai que faça a ponta dos lápis de cores, com que andam enchendo todos os livros e cadernos de histórias trazidos de Londres. Uma loura, outra morena, sempre que chegam têm um reparo vivo a fazer, um repente engraçado, como certa hora, em que a mais nova, a lourinha, de cinco anos, pretende revelar seus conhecimentos do "ABC":

- Qual é a coisa que começa com "A" e acaba com "A"?

Ninguém acerta, depois de várias experiências, e ela explica triunfante:

- "Açuca"!

Depois, vamos olhar as coisas que Herman Lima trouxe da sua peregrinação pelo Velho Mundo - figurinhas de Royal Copenhague e Royal Doulton, cerâmicas de Delft, de Viena e de Turim, livros de arte, telas inglesas e francesas que se enfileiram ao lado de magníficos retratos de Jordão de Oliveira, Joaquim Rocha Ferreira e Presciliano Silva, paisagens de Vicente Leite e originais de J. Carlos, em quantidade, mostrando o culto do escritor pelo nosso grande artista do lápis.

Mas é preciso deixar as coisas bonitas que enchem as paredes e as estantes, para passar à nossa conversa.

Herman Lima é cearense, embora muitos o julguem baiano:

- Nasci em Fortaleza, em maio de 1897, e toda a minha infância e adolescência foram passadas diante do mar, em nossa casa de Meireles, velho casarão "todo aberto ao sol e aos pobres", com um vasto alpendre de onde eu via todas as manhãs e todas as tardes a esquadrilha das jangadinhas desfilando na linha do horizonte, para a aventura da pesca no alto mar.



O CEARENSE E A MÍSTICA DO MAR

Vem daí a minha mística do mar. Todos nós, cearenses, somos em geral "fãs" do mar. Aquilo dos "verdes mares bravios" e a bonita história do velho Francisco Nascimento, o "Dragão do Mar", que impediu, na minha terra, o tráfico de escravos, desde 1875, bebem muito cedo com a gente. É o destino da raça, pela cantiga das ondas, o primeiro apelo da partida...

Mas, foram os contos de Gustavo Barroso, falando nas minhas paisagens familiares de Meireles e Mucuripe, que me despertaram a primeira sugestão do motivo literário do mar. Eram a crônica viva da "Flor do mar", da "Faceira" e da "Felicidade", as jangadinhas veleiras da volta da Jurema, que eu ouvia de novo, em páginas cheias de sentimento e beleza. Deve assim ao marinhista de "Velas brancas". "Finados" e "O pescador", a gênese dessas histórias que enfeixei depois em "Tigipió". Ao escritor de "Terra do sol", que é um dos títulos de glória das letras cearenses, devo também o relevo de um primeiro prêmio da Academia (Brasileira de Letras), dado a esse livro em 1926, quando isso representava um galardão considerável, de tremenda repercussão na província e que me abriu todos as portas literárias da Bahia e do Ceará. E aqui mesmo do Rio, vamos dizer também.

Uma viagem ao sertão jaguaribano, em plena seca de 1919, forneceu-me a matéria-prima dos outros contos. Até essa época eu não conhecia ainda o sertão, embora tivesse sentido sempre, profundamente, a emoção do "terroir". Lembro-me bem de certas noites estreladas da minha meninice, em que me perdia, horas e horas, na contemplação do céu estendido para além da linha de árvores do nosso sítio. De um lado, era o mar, meu conhecido de todas horas. Do outro, o sertão, a terra de meus avós paternos. Pelos caminhos do mar tinha vindo um antepassado, minha avó materna, de sangue flamengo, das vizinhanças de Antuérpia. Da outra banda, além da orla da mata, ficavam as estradas líquidas do Jaguaribe, as várzeas negras de carnaubais, de onde saíra um dia meu pai, na caravana de irmãos, para a conquista do mundo. Nessas noites estreladas, eu sentia uma estranha saudade do sertão, uma saudade que só podia ser atávica, na metempsicose dalgum vaqueiro caboclo... Foi assim que ao visitar, pela primeira vez, a casa da fazenda de meus avós, no Camocim, diante daquelas estradas poeirentas cortando as várzeas esturricadas, ao sussurro das carnaubeiras, eu me sentia num recinto familiar, numa revisão de cenários onde já vivera, sabe Deus quando. Não foi uma descoberta do sertão, como eu esperava, mas uma renovação de estado da alma...

MUITAS VIDAS NUMA VIDA

Aqui Herman Lima faz uma pausa e resolve insistir sobre este ponto, antes de continuar:

- Esta viagem ao sertão constituiu uma das fases decisivas da minha vida. Eu saíra de casa, quase adolescente, criado com todos os desvelos e carinhos de que são tão pródigas as mães brasileiras. Toda a minha vida, fora um menino quieto. Franzino, contemplativo e cheio de sonhos de letras, aceitei de repente, sem hesitação, a oferta de um lugar numa estrada de rodagem em construção no Aracati.

Era o ensejo de conhecer o sertão, que eu queria meter em minhas criações literárias, como também a maneira de fugir ao jugo do comércio, onde vinha trabalhando há três anos, na certeza de estar apenas malbaratando o meu tempo, uma vez que me faltava absolutamente vocação para aquilo.

Não podia ser mais violenta a virada que a minha vida ia tomar, pois me vi de repente em pleno cenário de uma seca espantosa, no coração do Nordeste, sem uma gota d'água há vinte meses, a braços com uma verdadeira avalanche de emigrantes em busca de obras do governo.

Fui trabalhar no campo, praticando para feitor de estrada, veja lá.

Meu mestre, meu verdadeiro mestre de energia – Orestes Vereza – de quem nunca mais soube nada, tratava-me aos gritos e remoques contra a minha lerdeza citadina, dando-me gana, muita vez, de largar tudo e ir embora. Mas, eu julgava estar aprendendo a viver, como ele dizia que era preciso ("Seu" Lima - era uma frase sua, predileta – quem é bom demais para os outros é mau para si!") e tratava de engolir as diatribes do melhor modo. Passada a hora da "lição", que ia das seis da manhã às cinco da tarde, a cavalo o tempo todo, acima e abaixo, numa extensão diária de três ou quatro léguas a fio, mestre Vereza modificava-se totalmente, e quando nós voltávamos juntos para casa, ele me contava anedotas e se abria em confidências, numa camaradagem fácil, que me fazia esquecer o treino bruto a recomeçar no dia seguinte...

O certo é que ao cabo de dois meses eu estreava em forma, no meu setor, chefe de mil e cem homens de todos os arredores estaduais, cangaceiros do Cariri, vaqueiros do Rio Grande do Norte, agricultores da Paraíba, que a seca expulsava do sertão.

Metido numas botas altas, culote americana, chapéu Tom Mix, camisa de mescla aberta no peito, com um tremendo Colt 38, carga dupla, no quadril, varejando a estrada a cavalo, da manhã à noite, dando ordens, marcando serviços, medindo a profundeza dos "cortes", que eram verdadeiras fornalhas do inferno, picado de espinhos de mandacaru e xiquexique, essa foi a minha vida por um semestre único na minha existência.

Herman Lima faz outra pausa, enquanto nos servimos de café. Em seguida, comenta pensativo:

- Decididamente, nós vivemos um bocado de vidas sucessivas, quando não, superpostas...

Quando me lembro hoje do que fiz nessa época, tenho a idéia de que foi noutra longínqua encarnação... Na estrada, formávamos um grupo de rapazes de todo gênero, uns muito sisudos, outros mais ou menos loucos, num destemor alucinado, que até hoje nunca soube por que milagre não acarretou um bocado de vítimas.

Todos montando muito bem, manejando revolver com segurança - eu me gabava de meter três balas juntas num "olho" de carnaúba, sem desmontar do cavalo - fazíamos umas famosas correrias ainda hoje recordadas no Sertão. Tom Mix e Rolleaux estavam na moda e nós inventávamos sempre uma viagem maluca, de uma a outra "residência" da estrada. Desde longe ainda, à chegada, arrancávamos os revólveres e rompíamos num tiroteio feroz, na direção da casa do engenheiro. Era o sinal combinado. E enquanto investíamos, a galope pela estrada, sempre atirando, éramos recebidos por uma tremenda salva de tiros de rifle, muitos deles bem largados na nossa direção... Tudo como nos filmes Far West, que nos boliam tanto com o sangue...

Depois, cada um mudou de rumo. Fiquei sozinho, por lá, uns tempos mais, desorientado em face do futuro, principalmente depois da partida dos outros.

UM CONSELHO GENIAL

Foi quando uma ilustre senhora cearense, D. Adília Morais, cujo filho trabalhava conosco e que por isso nos englobava a todos no mesmo carinho materno, deu-me o conselho mais genial que já ouvi na vida: escrever uma carta ao presidente Epitácio Pessoa, pedindo aproveitamento num dos lugares para os quais eu tinha dois concursos aprovados, em véspera de caducar: agente fiscal e escriturário de Fazenda. A carta seguiu, muito simples e franca, sem maior entusiasmo da minha parte, na verdade, quando vinte dias depois recebia um telegrama do Dr. Agenor de Roure, secretário da Presidência da República, avisando que "Senhor Presidente recebeu carta manda dizer sua nomeação Alfândega".

Guardo ainda esse telegrama e nunca me esquecerei do nobre gesto de generosidade do eminente brasileiro, a quem quero render de público a minha homenagem de gratidão para sempre.

Começou aí outro capítulo da minha história. Seguindo para Fortaleza, continuei a estudar meus preparatórios, interrompidos cinco anos antes. Transferido depois para a Delegacia Fiscal na Bahia, completei o curso, ingressando na Faculdade de Medicina em 1922.

Só eu sei o que me custou esse curso médico. Obrigado a freqüentar as aulas e o hospital, e preso das onze às cinco da tarde ao meu trabalho na repartição, bem pesado, por sinal, pois todo o tempo trabalhei na Contadoria, considerada a secção mais árdua, todos os anos, a partir de setembro, tinha de acordar às três e meia da manhã, para pôr em dia o programa de estudos.

Esse tempo entretanto, apesar de duro, vive docemente na minha memória e no meu coração. Fiz muitos amigos, tive alguns triunfos na escola, fiquei noivo - e quanto sonho, quanto anseio de felicidade prometida por esse contínuo esforço!

EU TAMBÉM FUI GARIMPEIRO

Formado, foi preciso escolher meu novo campo de atividade. Eu sempre ouvira falar nas Lavras Diamantinas, com uma profunda curiosidade por aquele pedaço meio lendário do mundo. A literatura, como tem sempre acontecido nos meus planos, não era de todo alheia à resolução que tomei. Tendo de ir para qualquer canto, decidi-me por lá: além do mais, eu tinha em Lençóis um bom amigo e colega de grandes méritos, Milton de Moura Ferro. Esse recebeu-me de braços abertos e na sua companhia, irmãmente, comecei a vida clínica.

Dois anos varejei aqueles recantos fabulosos, identificando-me inteiramente com o garimpeiro e com a sua vida extraordinária. Trabalhava muito, mas a economia das Lavras regula-se pelo garimpo: quando o garimpeiro "pega" uma boa pedra, paga o que se pedir ou mais ainda. Mas, durante meses, também, pode-se ficar - às vezes para sempre - à espera do "bambúrrio" salvador. Sei de mim que ao cabo de dois anos estava quase nas condições da chegada, vendo o futuro sombrear-se cada vez mais, à agravação da crise de 1930/31, quando praticamente os garimpos ficaram desertos, ao reflexo do "crack" de Wall Street e da City. Meus projetos de vida nova, formação do meu lar e uma grande saudade da companheira prometida, que ficara no outro extremo da Bahia, deram-me coragem para um salto no escuro.

Larguei tudo, afastei-me da repartição, por uma licença mais dilatada e vim para o Rio. Não trazia nada, senão a idéia do que vira e sentira nas Lavras, bolindo no germe do meu futuro romance "Garimpos". Mas isso era muito pouco, certamente para enfrentar o Rio...

Esse foi talvez o meu período de vida mais duro. A revolução triunfara, eu tinha parentes e amigos influentes e contava obter com facilidade alguma coisa. Mas, os meses foram correndo, a licença extinguindo-se e eu completamente desamparado, sem dinheiro e sem a menor idéia de solução para o meu caso.

NINGUÉM SE FAZ POR SI

Foi quando me convenci de que ninguém se faz por si. Eu posso gabar-me, aliás, de ser um "self-made-man", como se pode ser. Mas, é que chega um momento na vida do cidadão melhor dotado, em que ele fracassara, se não tiver um braço que o ampare, um apoio que o leve avante, um conselho ou palavra de coração para lhe dar alento.

Ainda agora, depois da guerra, era muito comum, na França e na Inglaterra, devido à "shortage" de gasolina, você ir pela estrada, guiando, o carro e de repente avistar aqui e ali uma pessoa de braço levantado, pedindo o que os ingleses chamam um "lift".

Está claro que, se não forem atendidos, os pretendentes seguirão caminho - às vezes léguas - e hão de chegar de qualquer modo. Mas, em que estado, e em que disposição de espírito para com a humanidade egoísta e comodista!

Era de um "lift" desses que eu estava precisando. Eu estava então formado, com dez anos de serviço federal, dois livros publicados, um deles premiado pela Academia, um certo nome literário, e nada de conseguir o mínimo que pretendia no momento: minha transferência para o Tesouro Nacional.

Foi quando um dia Olegário Mariano, indo comigo levar ao cais um amigo comum, ao ouvir as minhas queixas desesperadas, parou de repente e disse, num lampejo daquela sua imensa vontade de servir aos outros: - Quem sabe se eu não consigo resolver seu caso com o Gregório?

Um telefonema para Gregório da Fonseca, secretário da Presidência, e no dia seguinte eu obtinha desse um cartão para uma alta personalidade da Fazenda: resultado - dois dias depois, saía minha nomeação para o velho casarão da Avenida Passos...

Ora veja você - como diz o Jararaca. Um simples gesto do poeta, um compreensivo sentimento de simpatia humana, e a minha vida pode tomar um rumo definitivo, pois que datou desse minuto a realização de tudo o que eu sonhara desde guri.

Na verdade, desde os meus tempos de menino, eu falava sempre em morar no Rio e fazer uma viagem à Europa. Como isso seria possível não sabia. Não tinha um tostão de meu, porém teimava em dizer que se não cumprisse esses desígnios teria sido tapeado pela vida...

Minha aproximação com Gregório da Fonseca, esse que Humberto de Campos chamou devidamente São Gregório, valeu-me o passo inicial para outra etapa. Atendido no meu desejo, tive ocasião de oferecer-lhe meus livros e ele não se esqueceu de mim. Vagando dois anos depois um lugar no Gabinete da Presidência, sugeriu meu nome, por proposta do então secretário do ministro Osvaldo Aranha, o atual ministro Ruben Rosa -, e eis como, na mais inesperada das distinções, me vejo pessoa de confiança do Catete. Ao investir-me no novo cargo, vinha comigo uma promessa do ministro Aranha de me mandar para a Delegacia do Tesouro em Londres. A ele devo portanto, em parte, a realização desse projeto, pois sua promessa, quando ele já deixara a pasta, foi uma credencial com que me muni, para falar ao próprio presidente, ao abrir-me uma vaga oportuna, quatro anos depois. Tive então a alegria de ser escolhido, pelo doutor Getúlio Vargas, num gesto de pura bondade, em atenção apenas aos meus parcos méritos intelectuais, quando havia nada menos de trinta e tantos candidatos, alguns deles dos mais cotados granfinos da política nacional, então em pleno fervedouro do Congresso, pois estávamos no princípio de trinta e sete. Mas, a distinção do presidente não me surpreendeu, e quando me aventurei a abordá-lo - uma vez só! - estava plenamente confiante, pois tivera tempo já em quatro anos de trato diário, de verificar o apreço dado por ele a todos os escritores e intelectuais brasileiros. (Não é preciso recordar, por ser de hoje, a aposentadoria "sui-generis" do poeta Catulo Cearense, por ele concedida em atenção aos serviços prestados pelo inoperante datilógrafo às letras nacionais).

O que foi para mim a estada na Europa eu não posso traduzir em meia hora de conversa.

Vivi três anos em Londres, em contato com a civilização mais estratificada do globo. Nas férias, viajei muito, olhando uma dúzia de países, à "vol-d'oiseau", é certo, mas tendo tempo, aqui e ali, para um cotejo feliz, um reparo útil. Do que vi nessas viagens dou conta em meu livro "Outros céus, outros mares", a sair até o fim do ano. Da Inglaterra, já disse o que pretendia dizer, num livro honesto e objetivo, com a mesma disposição de espírito que eu usaria se aquele país e aquela gente não estivessem na guerra.

UM BALANÇO MORAL

Não sei se era Marco Aurélio quem uma vez por outra gostava de dar um balanço moral na sua vida, para saber principalmente o seu passivo...

Eu quero aproveitar esta conversa com os leitores para um balanço desses. Não que isso lhes interesse muito, mas é uma espécie de prestação de contas que estou fazendo com a vida, a primeira por sinal assim de público, e não posso perder a oportunidade.

Primeiramente, devo a meu pai essa vitória, que nunca me abandonou graças a Deus, nem nos meus momentos mais amargos.

É claro que devo à minha fé religiosa o amparo de todas as horas, mas há instantes na vida em que o estímulo humano é bem mais forte do que as próprias promessas divinas, pela miserável contingência da matéria, que acima de tudo anseia pelo direto controle e pela "experiência" concreta...

Meu pai é um dos maiores lutadores que eu tenho conhecido na vida. Se toda a sua atividade tivesse sido empregada no sul, ele seria hoje milionário. Mas, os seus esforços perderam-se num campo ingrato e hoje é quase tão pobre como ao começar a luta de mais de cinqüenta anos. Mas, sempre animoso, tocado de obstinada esperança num futuro melhor, numa inquebrantável energia que transforma os tropeços em estímulos e as decepções em coragem para outro ímpeto.

De minha mãe veio-me sem dúvida esse pendão para as coisas do espírito. Sempre a via lendo, nas folgas dos trabalhos caseiros, e temos ainda, em nossa casa de Meireles, alguns "carvões" seus do tempo da Escola Normal, que toda a vida me deram muita alegria e o desejo de imitá-la, o que fiz com algum êxito, pois diversas ilustrações minhas foram publicadas nas revistas cariocas, há coisa de vinte e cinco anos. A primeira edição de "Tigipió" foi também ilustrada por mim.

Já falei no gesto decisivo dos dois presidentes, um ouvindo um pobre feitor de estrada, perdido nos sertões nordestinos, o outro sobrepondo a vontade de ser bom ao interesse de agradar à tribo de políticos atropeladores... E, de permeio, quando amigos inalteráveis, queridos amigos, a quem devo tanto conforto moral e material nas horas más, almas nobres que eu venero no íntimo do meu coração, para sempre.
Herman Lima está comovido, e, para mudar o rumo da confidência, fazemos uma pergunta inesperada:

- Você nunca escreveu versos?

A resposta é pronta e decisiva:

– Não! Nunca! - Depois, num sorriso, faz uma reticência: - Para falar verdade, só uma vez tentei a poesia. Acabara de ler "Salambó", e durante várias noites martelei os quatorze versos de um soneto de fábrica, celebrando a virgem de Cartago, imagine! Só uma pessoa no mundo conheceu esse delito: Saboia Ribeiro, justamente daqueles amigos de todas as horas, atualmente no interior da Bahia, na zona dos "Rincões dos frutos de ouro", que ele pintou de modo magnífico, num livro de contos desse título.

Saboia Ribeiro leu os versos e decretou:

- "Seu" Herman, isto está ruim como o diabo!"

Como vê, eu tinha esquecido esta dívida de gratidão pelo meu amigo, a quem devo, entre tanta coisa, nunca mais ter reiniciado. Essa dívida, aliás, não é minha apenas. É quase uma dívida nacional, por se ter livrado o Brasil do pior poeta a surgir talvez sob o Cruzeiro do Sul...

E, para acabar sem esquecer pelo menos um dos outros credores, do meu coração ou do meu espírito, desses credores de atos decisivos no meu destino, não quero deixar sem referência o nome de Alcides Mendes, espírito alerta e sensível, que as contingências da vida provinciana impediram de florescer em toda a sua riqueza própria. É a ele que devo a divina inquietação da "coisa" literária, esse insaciável gosto de ler, o roteiro inicial no campo das letras, que me soube transmitir, pondo-me nas mãos os primeiros livros sérios que li: "Madame Bovari" e "Os Contos" do Eça, num verdadeiro "blitzkrieg" contra a minha curiosidade em potencial...

- Agora uma pergunta, para acabar:

- Que é que você ainda espera da vida?

- Não sei se foi Seneca ou Platão que designou aquele conceito de certa finalidade da vida - plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Eu já escrevi mais de um livro, tenho duas filhas... e, quanto à árvore, espero plantá-la no primeiro retalho de terra que Deus me der.

Tigipió
O livro Tigipió, a obra mais conhecida de Herman Lima, conta a trajetória de um coronel nordestino, cuja vida é marcada por duas secas: na de 1915, perde toda a sua fortuna. Na de 1918, surge como trabalhador braçal, quebrando pedras numa frente de trabalho organizada pelo governo. O livro foi levado às telas do cinema pelo cineasta cearense Pedro Jorge de Castro, com José Dumont no elenco.

O pai
Em Poeira do Tempo, publicado em 1967, o escritor escreve sobre o seu pai, a quem Herman dedica, na entrevista, "essa vitória": "Nele me revejo... na mesma secura de gestos e palavras com que mascaro, sabe Deus como, o coração, quando seria tão doce o adejo duma carícia ou a emoliência de certa frase; na mesma aferrada teimosia das minhas resistências ao cortejamento dos graúdos, como nos mesmos sacrifícios com que minha vida de tantas horas renova as suas lutas do passado. Por tudo isso, papai é, para mim, o Ceará."

Do primário à faculdade
Herman de Castro Lima nasceu em Fortaleza no dia 11 de maio de 1897, filho de Antônio Silva Lima e de D. Julieta Demarteau de Castro Lima. Fez o curso primário na escola pública de D. Ifigênia Amaral, professora muito conceituada na capital cearense. Nunca cursou o ginásio, pois começou logo a trabalhar para ajudar no orçamento doméstico. Ele costumava dizer que saiu da escola primária diretamente para a Faculdade de Medicina da Bahia.
   
Annette Loureiro
Sua tese de doutoramento chamava-se "A Facies da Criança" e foi publicada pela A Nova Gráfica com a seguinte dedicatória: "À minha querida noiva, Annette Loureiro, com toda a pureza do meu afeto mais vivo, o meu futuro". Segundo Rachel de Queiroz, que a conheceu de perto, Annette era uma moça baiana de rara beleza, que deu a Herman, após o casamento, seis filhas e um filho: Teresinha, Jana, Maria Violeta, Silvia, Marta, Ana Beatriz e João Antônio.

Carimbo dos Correios
O centenário de Herman Lima ganhou um carimbo comemorativo dos Correios. Lançado em maio de 1997, o carimbo reproduz uma charge-portrait de J. Carlos, que data de 1940. No mesmo ano, uma exposição na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, mostrou a obra e o homem Herman Lima, com objetos pessoais, prêmios e a capa da primeira edição de Tigipió.

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