Tigipió - Livro de Contos do cearense HERMAN LIMA
HERMAN LIMA, UM
ESCRITOR ESQUECIDO
Alguém já ouviu falar
de HERMAN LIMA, escritor cearense nascido em Fortaleza, aos 11 de maio de 1897?
Seu centenário, em 1997 foi completamente esquecido, mas três anos depois o
jornal O POVO fez o resgate de uma entrevista realizada com o autor de TIGIPIÓ,
livro de contos premiado pela Academia Brasileira de Letras. Vejamos o texto publicado
no Jornal O POVO 04/01/2000:
Conversando com Herman
Lima
Precisou ser
comemorado o seu centenário, há dois anos, para que alguns jornais se
redimissem do esquecimento que atribuíram ao escritor Herman Lima. No O POVO
essa tarefa coube ao advogado e bibliófilo José Bonifácio Câmara, em textos
produzidos para o caderno Sábado.
Cearense nascido ainda
no século passado, em Fortaleza, com passagens pela Bahia, Rio de Janeiro e
Inglaterra, Herman viveu as grandes secas no Ceará, que marcaram sua vida e sua
obra. Autor de Tigipió, Na Ilha de John Bull e Poeira do Tempo, entre outros, o
escritor conseguiu firmar seu nome entre os grandes regionalistas brasileiros.
No entanto, foi com uma vasta pesquisa sobre a caricatura no Brasil que ele
ganhou fama. A História da Caricatura no Brasil, publicado nos anos 60, é
considerado até hoje o mais completo registro da memória do traço brasileiro -
tido pelo poeta Carlos Drummond de Andrade como a obra definitiva do gênero. Trabalhador
infatigável, no entender de Bonifácio Câmara, Herman Lima escreveu até lhe
faltar a visão, vindo a falecer em 21 de junho de 1981, pouco menos de um ano
após o desaparecimento da esposa. Mas foi bem antes disso, em julho de 1941,
que O POVO lhe dedicou a entrevista a seguir, na qual o escritor relembra
passagens de sua vida e arrisca um "balanço moral". É uma boa
oportunidade, portanto, para a memória de nossa literatura – lembrança para
alguns, descoberta para outros.
Fomos encontrar Herman
Lima em sua casa no Leblon, rodeado de livros, ultimando a tradução do romance
inglês "Together and apart", que a Livraria José Olímpio Editora vai
publicar com o título de "O irreparável engano".
O autor de "Na
Ilha de John Bull" diz maravilhas desse romance, que na sua opinião vai
empolgar o nosso público.
- Não fosse um livro
de primeira água - diz ele de início - e não me abalançaria a traduzi-lo, sendo
obrigado a pôr de lado tanta coisa que tenho a fazer atualmente: acabar meu
segundo livro de viagens, escrever sobre dois ou três escritores ingleses e
principalmente dar começo à minha idéia mais cara no momento: uma série de
artigos sobre artes plásticas, da antigüidade à hora atual. Nada de
transcendente - bem se vê, mas uma contribuição cultural que julgo aproveitável
ao nosso povo, com dados biográficos, notas críticas e copiosa reprodução
fotográfica de quadros e esculturas.
Suas atividades
parecem assim voltadas para um setor novo, e é o que ele confirma, dando a
entender que não pensa mais, pelo menos por enquanto, em reingressar no campo
da ficção.
Enquanto conversamos,
suas filhinhas aproximam-se de vez em quando, para pedirem ao pai que faça a
ponta dos lápis de cores, com que andam enchendo todos os livros e cadernos de
histórias trazidos de Londres. Uma loura, outra morena, sempre que chegam têm
um reparo vivo a fazer, um repente engraçado, como certa hora, em que a mais
nova, a lourinha, de cinco anos, pretende revelar seus conhecimentos do
"ABC":
- Qual é a coisa que
começa com "A" e acaba com "A"?
Ninguém acerta, depois
de várias experiências, e ela explica triunfante:
- "Açuca"!
Depois, vamos olhar as
coisas que Herman Lima trouxe da sua peregrinação pelo Velho Mundo - figurinhas
de Royal Copenhague e Royal Doulton, cerâmicas de Delft, de Viena e de Turim,
livros de arte, telas inglesas e francesas que se enfileiram ao lado de
magníficos retratos de Jordão de Oliveira, Joaquim Rocha Ferreira e Presciliano
Silva, paisagens de Vicente Leite e originais de J. Carlos, em quantidade,
mostrando o culto do escritor pelo nosso grande artista do lápis.
Mas é preciso deixar
as coisas bonitas que enchem as paredes e as estantes, para passar à nossa
conversa.
Herman Lima é
cearense, embora muitos o julguem baiano:
- Nasci em Fortaleza,
em maio de 1897, e toda a minha infância e adolescência foram passadas diante
do mar, em nossa casa de Meireles, velho casarão "todo aberto ao sol e aos
pobres", com um vasto alpendre de onde eu via todas as manhãs e todas as
tardes a esquadrilha das jangadinhas desfilando na linha do horizonte, para a
aventura da pesca no alto mar.
O CEARENSE E A MÍSTICA
DO MAR
Vem daí a minha
mística do mar. Todos nós, cearenses, somos em geral "fãs" do mar.
Aquilo dos "verdes mares bravios" e a bonita história do velho
Francisco Nascimento, o "Dragão do Mar", que impediu, na minha terra,
o tráfico de escravos, desde 1875, bebem muito cedo com a gente. É o destino da
raça, pela cantiga das ondas, o primeiro apelo da partida...
Mas, foram os contos de
Gustavo Barroso, falando nas minhas paisagens familiares de Meireles e
Mucuripe, que me despertaram a primeira sugestão do motivo literário do mar.
Eram a crônica viva da "Flor do mar", da "Faceira" e da
"Felicidade", as jangadinhas veleiras da volta da Jurema, que eu
ouvia de novo, em páginas cheias de sentimento e beleza. Deve assim ao
marinhista de "Velas brancas". "Finados" e "O
pescador", a gênese dessas histórias que enfeixei depois em
"Tigipió". Ao escritor de "Terra do sol", que é um dos
títulos de glória das letras cearenses, devo também o relevo de um primeiro
prêmio da Academia (Brasileira de Letras), dado a esse livro em 1926, quando
isso representava um galardão considerável, de tremenda repercussão na
província e que me abriu todos as portas literárias da Bahia e do Ceará. E aqui
mesmo do Rio, vamos dizer também.
Uma viagem ao sertão
jaguaribano, em plena seca de 1919, forneceu-me a matéria-prima dos outros
contos. Até essa época eu não conhecia ainda o sertão, embora tivesse sentido
sempre, profundamente, a emoção do "terroir". Lembro-me bem de certas
noites estreladas da minha meninice, em que me perdia, horas e horas, na
contemplação do céu estendido para além da linha de árvores do nosso sítio. De
um lado, era o mar, meu conhecido de todas horas. Do outro, o sertão, a terra
de meus avós paternos. Pelos caminhos do mar tinha vindo um antepassado, minha
avó materna, de sangue flamengo, das vizinhanças de Antuérpia. Da outra banda,
além da orla da mata, ficavam as estradas líquidas do Jaguaribe, as várzeas
negras de carnaubais, de onde saíra um dia meu pai, na caravana de irmãos, para
a conquista do mundo. Nessas noites estreladas, eu sentia uma estranha saudade
do sertão, uma saudade que só podia ser atávica, na metempsicose dalgum
vaqueiro caboclo... Foi assim que ao visitar, pela primeira vez, a casa da
fazenda de meus avós, no Camocim, diante daquelas estradas poeirentas cortando
as várzeas esturricadas, ao sussurro das carnaubeiras, eu me sentia num recinto
familiar, numa revisão de cenários onde já vivera, sabe Deus quando. Não foi
uma descoberta do sertão, como eu esperava, mas uma renovação de estado da
alma...
MUITAS VIDAS NUMA VIDA
Aqui Herman Lima faz
uma pausa e resolve insistir sobre este ponto, antes de continuar:
- Esta viagem ao
sertão constituiu uma das fases decisivas da minha vida. Eu saíra de casa,
quase adolescente, criado com todos os desvelos e carinhos de que são tão
pródigas as mães brasileiras. Toda a minha vida, fora um menino quieto.
Franzino, contemplativo e cheio de sonhos de letras, aceitei de repente, sem
hesitação, a oferta de um lugar numa estrada de rodagem em construção no
Aracati.
Era o ensejo de
conhecer o sertão, que eu queria meter em minhas criações literárias, como
também a maneira de fugir ao jugo do comércio, onde vinha trabalhando há três
anos, na certeza de estar apenas malbaratando o meu tempo, uma vez que me
faltava absolutamente vocação para aquilo.
Não podia ser mais
violenta a virada que a minha vida ia tomar, pois me vi de repente em pleno cenário
de uma seca espantosa, no coração do Nordeste, sem uma gota d'água há vinte
meses, a braços com uma verdadeira avalanche de emigrantes em busca de obras do
governo.
Fui trabalhar no
campo, praticando para feitor de estrada, veja lá.
Meu mestre, meu verdadeiro
mestre de energia – Orestes Vereza – de quem nunca mais soube nada, tratava-me
aos gritos e remoques contra a minha lerdeza citadina, dando-me gana, muita
vez, de largar tudo e ir embora. Mas, eu julgava estar aprendendo a viver, como
ele dizia que era preciso ("Seu" Lima - era uma frase sua, predileta
– quem é bom demais para os outros é mau para si!") e tratava de engolir
as diatribes do melhor modo. Passada a hora da "lição", que ia das
seis da manhã às cinco da tarde, a cavalo o tempo todo, acima e abaixo, numa
extensão diária de três ou quatro léguas a fio, mestre Vereza modificava-se
totalmente, e quando nós voltávamos juntos para casa, ele me contava anedotas e
se abria em confidências, numa camaradagem fácil, que me fazia esquecer o treino
bruto a recomeçar no dia seguinte...
O certo é que ao cabo
de dois meses eu estreava em forma, no meu setor, chefe de mil e cem homens de
todos os arredores estaduais, cangaceiros do Cariri, vaqueiros do Rio Grande do
Norte, agricultores da Paraíba, que a seca expulsava do sertão.
Metido numas botas
altas, culote americana, chapéu Tom Mix, camisa de mescla aberta no peito, com
um tremendo Colt 38, carga dupla, no quadril, varejando a estrada a cavalo, da
manhã à noite, dando ordens, marcando serviços, medindo a profundeza dos "cortes",
que eram verdadeiras fornalhas do inferno, picado de espinhos de mandacaru e
xiquexique, essa foi a minha vida por um semestre único na minha existência.
Herman Lima faz outra
pausa, enquanto nos servimos de café. Em seguida, comenta pensativo:
- Decididamente, nós
vivemos um bocado de vidas sucessivas, quando não, superpostas...
Quando me lembro hoje
do que fiz nessa época, tenho a idéia de que foi noutra longínqua encarnação...
Na estrada, formávamos um grupo de rapazes de todo gênero, uns muito sisudos,
outros mais ou menos loucos, num destemor alucinado, que até hoje nunca soube
por que milagre não acarretou um bocado de vítimas.
Todos montando muito
bem, manejando revolver com segurança - eu me gabava de meter três balas juntas
num "olho" de carnaúba, sem desmontar do cavalo - fazíamos umas
famosas correrias ainda hoje recordadas no Sertão. Tom Mix e Rolleaux estavam
na moda e nós inventávamos sempre uma viagem maluca, de uma a outra
"residência" da estrada. Desde longe ainda, à chegada, arrancávamos
os revólveres e rompíamos num tiroteio feroz, na direção da casa do engenheiro.
Era o sinal combinado. E enquanto investíamos, a galope pela estrada, sempre
atirando, éramos recebidos por uma tremenda salva de tiros de rifle, muitos
deles bem largados na nossa direção... Tudo como nos filmes Far West, que nos
boliam tanto com o sangue...
Depois, cada um mudou
de rumo. Fiquei sozinho, por lá, uns tempos mais, desorientado em face do
futuro, principalmente depois da partida dos outros.
UM CONSELHO GENIAL
Foi quando uma ilustre
senhora cearense, D. Adília Morais, cujo filho trabalhava conosco e que por
isso nos englobava a todos no mesmo carinho materno, deu-me o conselho mais
genial que já ouvi na vida: escrever uma carta ao presidente Epitácio Pessoa, pedindo
aproveitamento num dos lugares para os quais eu tinha dois concursos aprovados,
em véspera de caducar: agente fiscal e escriturário de Fazenda. A carta seguiu,
muito simples e franca, sem maior entusiasmo da minha parte, na verdade, quando
vinte dias depois recebia um telegrama do Dr. Agenor de Roure, secretário da
Presidência da República, avisando que "Senhor Presidente recebeu carta
manda dizer sua nomeação Alfândega".
Guardo ainda esse
telegrama e nunca me esquecerei do nobre gesto de generosidade do eminente
brasileiro, a quem quero render de público a minha homenagem de gratidão para
sempre.
Começou aí outro
capítulo da minha história. Seguindo para Fortaleza, continuei a estudar meus
preparatórios, interrompidos cinco anos antes. Transferido depois para a
Delegacia Fiscal na Bahia, completei o curso, ingressando na Faculdade de
Medicina em 1922.
Só eu sei o que me
custou esse curso médico. Obrigado a freqüentar as aulas e o hospital, e preso
das onze às cinco da tarde ao meu trabalho na repartição, bem pesado, por
sinal, pois todo o tempo trabalhei na Contadoria, considerada a secção mais
árdua, todos os anos, a partir de setembro, tinha de acordar às três e meia da
manhã, para pôr em dia o programa de estudos.
Esse tempo entretanto,
apesar de duro, vive docemente na minha memória e no meu coração. Fiz muitos
amigos, tive alguns triunfos na escola, fiquei noivo - e quanto sonho, quanto
anseio de felicidade prometida por esse contínuo esforço!
EU TAMBÉM FUI
GARIMPEIRO
Formado, foi preciso
escolher meu novo campo de atividade. Eu sempre ouvira falar nas Lavras
Diamantinas, com uma profunda curiosidade por aquele pedaço meio lendário do
mundo. A literatura, como tem sempre acontecido nos meus planos, não era de
todo alheia à resolução que tomei. Tendo de ir para qualquer canto, decidi-me
por lá: além do mais, eu tinha em Lençóis um bom amigo e colega de grandes
méritos, Milton de Moura Ferro. Esse recebeu-me de braços abertos e na sua
companhia, irmãmente, comecei a vida clínica.
Dois anos varejei
aqueles recantos fabulosos, identificando-me inteiramente com o garimpeiro e
com a sua vida extraordinária. Trabalhava muito, mas a economia das Lavras
regula-se pelo garimpo: quando o garimpeiro "pega" uma boa pedra,
paga o que se pedir ou mais ainda. Mas, durante meses, também, pode-se ficar -
às vezes para sempre - à espera do "bambúrrio" salvador. Sei de mim
que ao cabo de dois anos estava quase nas condições da chegada, vendo o futuro
sombrear-se cada vez mais, à agravação da crise de 1930/31, quando praticamente
os garimpos ficaram desertos, ao reflexo do "crack" de Wall Street e
da City. Meus projetos de vida nova, formação do meu lar e uma grande saudade
da companheira prometida, que ficara no outro extremo da Bahia, deram-me
coragem para um salto no escuro.
Larguei tudo,
afastei-me da repartição, por uma licença mais dilatada e vim para o Rio. Não
trazia nada, senão a idéia do que vira e sentira nas Lavras, bolindo no germe
do meu futuro romance "Garimpos". Mas isso era muito pouco,
certamente para enfrentar o Rio...
Esse foi talvez o meu
período de vida mais duro. A revolução triunfara, eu tinha parentes e amigos
influentes e contava obter com facilidade alguma coisa. Mas, os meses foram
correndo, a licença extinguindo-se e eu completamente desamparado, sem dinheiro
e sem a menor idéia de solução para o meu caso.
NINGUÉM SE FAZ POR SI
Foi quando me convenci
de que ninguém se faz por si. Eu posso gabar-me, aliás, de ser um
"self-made-man", como se pode ser. Mas, é que chega um momento na
vida do cidadão melhor dotado, em que ele fracassara, se não tiver um braço que
o ampare, um apoio que o leve avante, um conselho ou palavra de coração para
lhe dar alento.
Ainda agora, depois da
guerra, era muito comum, na França e na Inglaterra, devido à
"shortage" de gasolina, você ir pela estrada, guiando, o carro e de
repente avistar aqui e ali uma pessoa de braço levantado, pedindo o que os
ingleses chamam um "lift".
Está claro que, se não
forem atendidos, os pretendentes seguirão caminho - às vezes léguas - e hão de
chegar de qualquer modo. Mas, em que estado, e em que disposição de espírito
para com a humanidade egoísta e comodista!
Era de um
"lift" desses que eu estava precisando. Eu estava então formado, com
dez anos de serviço federal, dois livros publicados, um deles premiado pela
Academia, um certo nome literário, e nada de conseguir o mínimo que pretendia
no momento: minha transferência para o Tesouro Nacional.
Foi quando um dia
Olegário Mariano, indo comigo levar ao cais um amigo comum, ao ouvir as minhas
queixas desesperadas, parou de repente e disse, num lampejo daquela sua imensa
vontade de servir aos outros: - Quem sabe se eu não consigo resolver seu caso
com o Gregório?
Um telefonema para
Gregório da Fonseca, secretário da Presidência, e no dia seguinte eu obtinha
desse um cartão para uma alta personalidade da Fazenda: resultado - dois dias
depois, saía minha nomeação para o velho casarão da Avenida Passos...
Ora veja você - como
diz o Jararaca. Um simples gesto do poeta, um compreensivo sentimento de
simpatia humana, e a minha vida pode tomar um rumo definitivo, pois que datou
desse minuto a realização de tudo o que eu sonhara desde guri.
Na verdade, desde os
meus tempos de menino, eu falava sempre em morar no Rio e fazer uma viagem à
Europa. Como isso seria possível não sabia. Não tinha um tostão de meu, porém
teimava em dizer que se não cumprisse esses desígnios teria sido tapeado pela
vida...
Minha aproximação com
Gregório da Fonseca, esse que Humberto de Campos chamou devidamente São
Gregório, valeu-me o passo inicial para outra etapa. Atendido no meu desejo,
tive ocasião de oferecer-lhe meus livros e ele não se esqueceu de mim. Vagando
dois anos depois um lugar no Gabinete da Presidência, sugeriu meu nome, por
proposta do então secretário do ministro Osvaldo Aranha, o atual ministro Ruben
Rosa -, e eis como, na mais inesperada das distinções, me vejo pessoa de
confiança do Catete. Ao investir-me no novo cargo, vinha comigo uma promessa do
ministro Aranha de me mandar para a Delegacia do Tesouro em Londres. A ele devo
portanto, em parte, a realização desse projeto, pois sua promessa, quando ele
já deixara a pasta, foi uma credencial com que me muni, para falar ao próprio
presidente, ao abrir-me uma vaga oportuna, quatro anos depois. Tive então a
alegria de ser escolhido, pelo doutor Getúlio Vargas, num gesto de pura
bondade, em atenção apenas aos meus parcos méritos intelectuais, quando havia
nada menos de trinta e tantos candidatos, alguns deles dos mais cotados
granfinos da política nacional, então em pleno fervedouro do Congresso, pois
estávamos no princípio de trinta e sete. Mas, a distinção do presidente não me
surpreendeu, e quando me aventurei a abordá-lo - uma vez só! - estava
plenamente confiante, pois tivera tempo já em quatro anos de trato diário, de verificar
o apreço dado por ele a todos os escritores e intelectuais brasileiros. (Não é
preciso recordar, por ser de hoje, a aposentadoria "sui-generis" do
poeta Catulo Cearense, por ele concedida em atenção aos serviços prestados pelo
inoperante datilógrafo às letras nacionais).
O que foi para mim a
estada na Europa eu não posso traduzir em meia hora de conversa.
Vivi três anos em
Londres, em contato com a civilização mais estratificada do globo. Nas férias,
viajei muito, olhando uma dúzia de países, à "vol-d'oiseau", é certo,
mas tendo tempo, aqui e ali, para um cotejo feliz, um reparo útil. Do que vi
nessas viagens dou conta em meu livro "Outros céus, outros mares", a
sair até o fim do ano. Da Inglaterra, já disse o que pretendia dizer, num livro
honesto e objetivo, com a mesma disposição de espírito que eu usaria se aquele
país e aquela gente não estivessem na guerra.
UM BALANÇO MORAL
Não sei se era Marco
Aurélio quem uma vez por outra gostava de dar um balanço moral na sua vida,
para saber principalmente o seu passivo...
Eu quero aproveitar
esta conversa com os leitores para um balanço desses. Não que isso lhes
interesse muito, mas é uma espécie de prestação de contas que estou fazendo com
a vida, a primeira por sinal assim de público, e não posso perder a
oportunidade.
Primeiramente, devo a
meu pai essa vitória, que nunca me abandonou graças a Deus, nem nos meus
momentos mais amargos.
É claro que devo à
minha fé religiosa o amparo de todas as horas, mas há instantes na vida em que
o estímulo humano é bem mais forte do que as próprias promessas divinas, pela
miserável contingência da matéria, que acima de tudo anseia pelo direto
controle e pela "experiência" concreta...
Meu pai é um dos
maiores lutadores que eu tenho conhecido na vida. Se toda a sua atividade
tivesse sido empregada no sul, ele seria hoje milionário. Mas, os seus esforços
perderam-se num campo ingrato e hoje é quase tão pobre como ao começar a luta
de mais de cinqüenta anos. Mas, sempre animoso, tocado de obstinada esperança
num futuro melhor, numa inquebrantável energia que transforma os tropeços em
estímulos e as decepções em coragem para outro ímpeto.
De minha mãe veio-me
sem dúvida esse pendão para as coisas do espírito. Sempre a via lendo, nas
folgas dos trabalhos caseiros, e temos ainda, em nossa casa de Meireles, alguns
"carvões" seus do tempo da Escola Normal, que toda a vida me deram
muita alegria e o desejo de imitá-la, o que fiz com algum êxito, pois diversas
ilustrações minhas foram publicadas nas revistas cariocas, há coisa de vinte e
cinco anos. A primeira edição de "Tigipió" foi também ilustrada por
mim.
Já falei no gesto
decisivo dos dois presidentes, um ouvindo um pobre feitor de estrada, perdido
nos sertões nordestinos, o outro sobrepondo a vontade de ser bom ao interesse
de agradar à tribo de políticos atropeladores... E, de permeio, quando amigos
inalteráveis, queridos amigos, a quem devo tanto conforto moral e material nas
horas más, almas nobres que eu venero no íntimo do meu coração, para sempre.
Herman Lima está
comovido, e, para mudar o rumo da confidência, fazemos uma pergunta inesperada:
- Você nunca escreveu
versos?
A resposta é pronta e
decisiva:
– Não! Nunca! -
Depois, num sorriso, faz uma reticência: - Para falar verdade, só uma vez
tentei a poesia. Acabara de ler "Salambó", e durante várias noites
martelei os quatorze versos de um soneto de fábrica, celebrando a virgem de
Cartago, imagine! Só uma pessoa no mundo conheceu esse delito: Saboia Ribeiro,
justamente daqueles amigos de todas as horas, atualmente no interior da Bahia,
na zona dos "Rincões dos frutos de ouro", que ele pintou de modo
magnífico, num livro de contos desse título.
Saboia Ribeiro leu os
versos e decretou:
- "Seu"
Herman, isto está ruim como o diabo!"
Como vê, eu tinha
esquecido esta dívida de gratidão pelo meu amigo, a quem devo, entre tanta
coisa, nunca mais ter reiniciado. Essa dívida, aliás, não é minha apenas. É
quase uma dívida nacional, por se ter livrado o Brasil do pior poeta a surgir
talvez sob o Cruzeiro do Sul...
E, para acabar sem
esquecer pelo menos um dos outros credores, do meu coração ou do meu espírito,
desses credores de atos decisivos no meu destino, não quero deixar sem
referência o nome de Alcides Mendes, espírito alerta e sensível, que as
contingências da vida provinciana impediram de florescer em toda a sua riqueza
própria. É a ele que devo a divina inquietação da "coisa" literária,
esse insaciável gosto de ler, o roteiro inicial no campo das letras, que me
soube transmitir, pondo-me nas mãos os primeiros livros sérios que li:
"Madame Bovari" e "Os Contos" do Eça, num verdadeiro
"blitzkrieg" contra a minha curiosidade em potencial...
- Agora uma pergunta,
para acabar:
- Que é que você ainda
espera da vida?
- Não sei se foi
Seneca ou Platão que designou aquele conceito de certa finalidade da vida -
plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Eu já escrevi mais de um
livro, tenho duas filhas... e, quanto à árvore, espero plantá-la no primeiro
retalho de terra que Deus me der.
Tigipió
O livro Tigipió, a
obra mais conhecida de Herman Lima, conta a trajetória de um coronel
nordestino, cuja vida é marcada por duas secas: na de 1915, perde toda a sua
fortuna. Na de 1918, surge como trabalhador braçal, quebrando pedras numa
frente de trabalho organizada pelo governo. O livro foi levado às telas do
cinema pelo cineasta cearense Pedro Jorge de Castro, com José Dumont no elenco.
O pai
Em Poeira do Tempo,
publicado em 1967, o escritor escreve sobre o seu pai, a quem Herman dedica, na
entrevista, "essa vitória": "Nele me revejo... na mesma secura
de gestos e palavras com que mascaro, sabe Deus como, o coração, quando seria
tão doce o adejo duma carícia ou a emoliência de certa frase; na mesma aferrada
teimosia das minhas resistências ao cortejamento dos graúdos, como nos mesmos
sacrifícios com que minha vida de tantas horas renova as suas lutas do passado.
Por tudo isso, papai é, para mim, o Ceará."
Do primário à
faculdade
Herman de Castro Lima
nasceu em Fortaleza no dia 11 de maio de 1897, filho de Antônio Silva Lima e de
D. Julieta Demarteau de Castro Lima. Fez o curso primário na escola pública de
D. Ifigênia Amaral, professora muito conceituada na capital cearense. Nunca
cursou o ginásio, pois começou logo a trabalhar para ajudar no orçamento
doméstico. Ele costumava dizer que saiu da escola primária diretamente para a
Faculdade de Medicina da Bahia.
Annette Loureiro
Sua tese de
doutoramento chamava-se "A Facies da Criança" e foi publicada pela A
Nova Gráfica com a seguinte dedicatória: "À minha querida noiva, Annette
Loureiro, com toda a pureza do meu afeto mais vivo, o meu futuro". Segundo
Rachel de Queiroz, que a conheceu de perto, Annette era uma moça baiana de rara
beleza, que deu a Herman, após o casamento, seis filhas e um filho: Teresinha,
Jana, Maria Violeta, Silvia, Marta, Ana Beatriz e João Antônio.
Carimbo dos Correios
O centenário de Herman
Lima ganhou um carimbo comemorativo dos Correios. Lançado em maio de 1997, o
carimbo reproduz uma charge-portrait de J. Carlos, que data de 1940. No mesmo
ano, uma exposição na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, mostrou a obra e
o homem Herman Lima, com objetos pessoais, prêmios e a capa da primeira edição
de Tigipió.
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