PELEJA DE CEGO ADERALDO*
COM O INDIO AZUPLIN
* Cego Aderaldo (Aderaldo Ferreira de
Araújo)
No livro EU SOU O CEGO ADERALDO, organizado por Eduardo
Campos e prefaciado por Rachel de Queiróz, relata o grande cantador cearense:
"Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores. Mas o
mais afamado, que emendou a camisa comigo, foi o índio Azuplim. Nossa batida
foi a que se segue..."
Eu saí do Ceará
Deixei meu triste
mocambo,
Com medo do dezenove,
Este pesadelo bambo.
Vinha o coronel
Monturo
Junto com doutor
Molambo...
A dona fome na frente,
Na cadeira do
trapiche,
Dizendo: No Ceará
Tudo é fofo e nada é
fixe.
Juro que aqui nesta
terra
Não vinga mais nem
maxixe...
A dona Fome me olhou
E disse à mim: — Eu
pego!
Eu lhe disse: — Não
senhora!
Eu sei por onde
navego,
Quem tem vista corre
logo,
Quanto mais eu sendo
cego...
Segui para Fortaleza,
Dei uma viagem além.
O barco era o
"Maranhão",
E até corria bem,
Com três dias e três
noites
Chegando nós em
Belém...
Quando eu cheguei em
Belém,
Me encostei naquele
cais.
— Aonde vai esta
linha?
Eu perguntei a um
rapaz
Ele disse: — Nesta
linha
Passa um trem para São
Brás...
Eu parti para São
Bras,
Para casa de Gaudêncio
Que já conhecia bem,
Ele, Salina e
Merêncio;
Junto estes amigos
Não pude guardar
silêncio...
Fui para Madre de
Deus,
Terra de um povo fiel,
Ali ganhei qualquer
cousa
Tomei açaí com mel,
De manhã peguei o
trem,
Fui para Santa
Isabel...
Depois fui para
Americana,
Cantei lá no Apéu,
Do sitio de São Luís
Eu fui pra Jambuaçu;
Eu cantei no
Castanhal,
E no Igarapeaçu...
No primeiro Caripi
Eu cantei, lá fui
feliz,
No segundo Caripi
Cantei tudo quanto
quis,
E ali tomei o trem,
Fui cantar em São
Luís...
Segui para Capanema
Com coragem e
esperança.
Passei uns dois ou
três dias
E segui para Bragança,
Dizendo sempre comigo:
— Quem espera em Deus
não cansa...
Quando eu cheguei em
Bragança,
Não quis ir no Benjamim,
Não encontrando
hospedagem,
Me hospedei num
botequim,
Que era coberto e
cavaco
E circulado a capim...
O dono do botequim
Veio a mim e
perguntou:
— Cego de onde tu és?
Me diga se é cantador.
Me diga se não tem
medo
De azuplim trovador...
Me perguntei: — Não
senhor!
Será algum
rio-grandense
Ou mesmo um paraibano,
Ou um cantador
cearense?
Ele disse: — Não
senhor,
É um cantor
paraense...
Quando findei a
palavra
Vi o paraense chegar,
Ele trazia consigo
Uma viola e um ganzá,
E trazia um tamborim,
Que é instrumento de
lá...
Ele afinou a viola,
Quando bateu no ganzá,
Deu um tom no tamborim
Para o baião entoar,
Eu tirei a rabequinha
E fiz a prima chorá...
Cego — Eu lhe disse: —
Oh! Paraense,
És uma ninfa de fada,
Teu cântico me parece
A deusa da madrugada.
Eu lhe peço,
amicíssimo,
Que cante a sua
toada...
Azuplim — Cego, minha
toada é,
Um trabalhador
garantido.
Você pra cantar mais
eu
Precisa ser aprendido,
Queira Deus tu me
acompanhe, ai ai!
Pra cantar nesse
gemido...
C — Meu amigo, o teu
gemido,
Tem destacado valor,
Canta bem
perfeitamente,
Já vi que é bom
cantador,
Mas amigo, esse
gemido,
Me desculpe , que eu
não dou...
A — Se num dás um só
gemido
Também não és
cantador,
Vá cobrar logo o
dinheiro.
Do mestre que lhe
ensinou, ai, ai!
O cego já apanhou...
C — Se gemer foi
cantoria,
Você é bom cantador,
Pois gemes
perfeitamente,
No gemido tem valor,
Mas geme com grande
dor...
A — Ou que gema ou que
não gema,
A boa palavra encerra,
Cego, cante aqui mais
eu,
Que eu vim lhe fazer
guerra,
Quero que você me
diga, ai, ai!
A linguagem da minha
terra...
C — A linguagem da tua
terra,
Não é linguagem
mesquinha,
É toda no guarani
Estudada, é bonitinha!
Para que não
perguntaste
A linguagem da terra
minha?...
A — Eu quero é que
diga da minha
Por que muda de
figura:
Cego, diga para mim
O que nós chama
mucura,
Quero que você me
diga, ai, ai!
O que é saracura...
C — É verdade, essa
linguagem
Muda mesmo de figura,
O que nós chama casaco
Vocês só chamam mucura
E o que nós chama
sericóia
Vocês chamam
saracura...
A — Cego, diga para
mim:
O que é jamaru?
Queira Deus você me
diga
O que é jacuraru,
O que é macuracar ai,
ai!
O que nós chama
jambu...
C — É o que nós chama
cabeça,
Vocês chama jamaru,
O que nós chama tejo,
Vocês chama jacuraru,
Tipi é mucuracar,
E agrião chamam
jambu...
A — Cego, diga para
mim
O que nós chama
jibóia,
Quero que você me diga
O que é tiranabóia,
Diga aí pra eu saber,
ai, ai!
O que é "pegando
a bóia"...
C — No Piauí tem um
besouro
De nome tiranabóia,
Nossa cobra-de-veado
Cresce aqui, chamam
jibóia,
Em minha terra almoço
e janto,
... tanto aqui só
"pego a bóia"...
A — Cego, diga para
mim
O que é a sacupema,
Veja se você me diz
O que é piracema,
Diga aí rapidamente,
ai, ai!
O que nós chama
panema...
C — O que nós chama
raiz
Vocês chama sacupema,
O que nós chama peixe
muito
Vocês chamam piracema;
A um sujeito
preguiçoso
Chega aqui chamam
panema...
A — Cego, diga para
mim
A língua dos
Tupinambá,
A língua dos Aimoré,
Ou dos índios Caetá,
Ou sobre os índios
Tamoios
Ou índios Tamaracá...
C — Sobre as gírias
dos índios,
Desde o Norte até o
Sul,
Pixueira é coisa fria,
Um beijo chama meiru,
Tacioca é uma é uma
casa,
Morada de caititu...
A — Agora o cego
Aderaldo
Me respondeu muito
bem,
Vi que gírias dos
índios,
Ele segue mais além,
Pelo jeito que estou
vendo
Você é índio também...
C — Meu amigo eu não
sou índio,
Nasci num pobre lugar:
Que é tão propenso a
seca
Que obriga agente
emigra
Sol danado de Iracema,
Terra de Zé de
Alencar...
A — Cego, deixa de
mentira,
Tua terra não tem
nome,
Tua terra é uma
miséria,
É lugar que não se
come,
De lá veio cinco mil,
Tudo pra morrer de
fome...
C — Dos cinco mil que
vieram
Algum era meu parente,
Uma era tio, outro
primo,
Conterrâneo e
aderente,
Mais esse povo só come
Massa de figo de
gente...
A — Saí daí, cego
canalha,
Com a sua poesia,
Nesta minha carretilha
Você hoje se
esbandalha,
Teu cântico tem grande
falha,
Quer cantar mais não
convém...
Você somente o que tem
É entrar no bacalhau;
Apanhar de peia e pau
Cearense aqui não vai
bem...
C — De onde tu vens
contrafeito,
Cabeça de onça mancho,
Bote o matulão abaixo
E conte a história
direito,
Me diga o que aqui tem
feito
Por estes mundos além,
Se você matou alguém
Ou então se fez
barulho,
Vai muito mau seu
embrulho,
Paraense aqui não vai
bem...
A — Quando eu pego um
cantador
Dou três tacada
danada,
Lhe deixo a cara
inchada
De relho e
chiquerador,
É o café que lhe dou,
É isto que lhe dou,
E não diz nada a
ninguém,
Apanha e fica calado,
Triste e desmoralizado
Cearense aqui não vai
bem...
C — Disse uma velha na
rua
Que em outros tempos
atrás
Você e um seu rapaz
Lhe roubaram uma
perua;
Veja que moda esta sua
Roubando quem vai,
quem vem,
Como tu não tem
ninguém
Mais ladrão do que
você.
Tome lá meu parecer:
Paraense aqui não vai
bem...
A — O cantador que eu
pegar
Pelo meio da travessa
Nem Padre lhe confessa
Enquanto eu não lhe
soltar,
Dou-lhe arrocho de lhe
quebra,
Osso e costela também,
Quebro tudo que ele
tem,
Deixo-lhe o corpo em
bagaço,
Tudo quanto eu digo eu
faço,
Cearense aqui não vai
bem...
C — Até as moças
donzelas
Pediram aos cabras da
feira
Para meter-lhe a
madeira
E arrebentar-lhe as
costelas.
Você abra o olho com
elas,
Boa surra você tem,
Boa surra você tem,
Neste dia também vem
A velhinha da perua
Quebrar-lhe a cara na
rua,
Paraense aqui não vai
bem...
A — Também não quero
brigar,
Não sou homem de
intriga,
Eu não nasci para
briga
E não vivo de pelejar;
Também não quero
teimar
Porque isso não
convém,
Lhe venero e quero
bem,
Digo isso pode crer;
Não quero lhe
aborrecer,
Cearense aqui vai
bem...
C — Amigo, como mudou,
Que coisa misteriosa!
Tens o perfume da rosa
Que a pouco
desabrochou.
Por isso tem o maior
verdor
Do que lá no bosque
tem.
O anjo lá de Belém
Ouviu nossa cantoria,
Entrarmos em harmonia,
Paraense aqui vai bem...
Havia quatro cervejas
Que um coronel apostou
Dizendo que todas
quatro
Pertencem ao vendedor
Nós dois bebemos as
cervejas
Nem um nem outro
apanhou...
(Estado do Pará, junho
de 1919)
Aderaldo Ferreira de
Araújo, o Cego
Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato — CE. Logo após
seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a
trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou
conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de
1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de
Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com
poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que
descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a
tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo
parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar
pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do
Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a
famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou
para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou
para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer
o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o
trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para
Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do
cangaceiro.
Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou
um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão
apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que
queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia
de apresentar vídeos. Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu
se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da
Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o
comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável.
Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar
desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser
reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas
importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a
serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de
peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. Cego Aderaldo
nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de
chefe de família pois criou 24 meninos.
Texto extraído do livro "Eu
sou o Cego Aderaldo", prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora —
São Paulo, 1994.
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