Há 100 anos, nascia João Cabral de
Melo Neto, o 'poeta engenheiro'
Por: Emannuel Bento | DP
Planejar a construção de uma casa envolve definição do
terreno, levantamento da mão de obra necessária para a execução até a obtenção
dos materiais e documentos. De forma símil, João Cabral de Melo Neto propôs uma
engenharia ao escrever. Decidia qual seria o plano do livro, número de poemas,
temas tratados. Assim, foi eternizado na história da literatura brasileira e
mundial: um poeta sistemático, objetivo e consistente, que rejeitava o trabalho
poético como um fruto de epifanias criativas ou inspirativas. E com isso tratou
da realidade dura do Nordeste com olhar atento, sobretudo às desigualdades
sociais. Hoje é comemorado o centenário do pernambucano, que viajou o globo
pelo ofício de diplomata, mas foi imortalizado no mundo pelos seus poemas. Em
1999, mesmo ano de sua morte, tornou-se o único poeta brasileiro a ser forte
candidato a receber o prêmio Nobel de Literatura.
Filho de Luís Antônio Cabral de Melo e Carmen Carneiro Leão
Cabral de Melo, João Cabral nasceu no Recife, mas passou parte considerável da
infância em engenhos de açúcar da família, em São Lourenço da Mata e Moreno, na
Zona da Mata pernambucana. Ainda aos 8 anos, já apreciava cordéis e até lia
algumas histórias para os empregados da família. Já nessa época, via a
diferença entre os senhores de engenho e os mais pobres, fosse pelos cordéis ou
pelo contato com os funcionários.
Aos 10 anos, ingressou no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos
Irmãos Marista, onde estudou até concluir o secundário. Teve uma formação muito
rica, que já o preparava para a carreira de diplomata. Estudou muito o
parnasianismo de Olavo Bilac, escola que incorporou o espírito positivista e
científico, que influenciou o viés “construtivista” de poema.
Na década de 1940, a família se transferiu para o Rio de
Janeiro. Na capital fluminense, publicou seu primeiro livro, Pedra do sono
(1942), uma coletânea com poemas escritos durante a adolescência em Pernambuco.
A obra é considerada um marco inicial do “cabralismo”, pois já tinha uma
preocupação na construção do poema e do objeto do qual se fala, mas com
experimentação poética e tentativas surrealistas - essa dualidade era
evidenciada no título, que mescla o concreto e o sereno.
Em 1945, após ingressar no Itamaraty, peregrinou por vários
países, como Inglaterra, Suíça e Senegal. O destaque foi a Espanha, onde viveu
em cidades como Barcelona, Sevilha e Andaluzia. “A temporada em Andaluzia
despertou em Cabral o interesse por manifestações populares da cultura, como o
canto cigano e as touradas”, explica Antonio Carlos Secchin, membro da Academia
Brasileira de Letras (ABL) e um dos principais pesquisadores da obra de Cabral.
“E foi somente a partir da experiência espanhola que o erotismo passou a marcar
presença em sua produção.”
O diálogo com a cultura espanhola influenciou um processo de
evidenciar uma visão objetiva do discurso lírico. O marco do início dessa linha
é O engenheiro (1945). Dez anos depois, lançou sua “magnum opus”: Morte e vida
severina, livro que retrata, em poema dramático, a trajetória de um retirante
do Sertão nordestino em busca de vida melhor no Litoral urbano, narrativa comum
em época de forte êxodo rural. O poema segue duas linhas que criam uma
dicotomia, já existente no título. O subtítulo do poema é Auto de Natal
pernambucano, criando um elo com autos medievais, conhecidos por linguagem
simples, às vezes cômicos e moralizadores.
Na segunda metade dos anos 1960, o texto foi adaptado para o
teatro em meio ao ápice de sua carreira. Foi nesse período que ele ingressou na
ABL e publicou Educação pela pedra (1966), considerada sua obra-prima pela
crítica. Muitos consideravam, inclusive, que não havia mais para onde
progredir. O livro reúne 48 poemas criados de um modo rigoroso e sistemático,
que procuravam atingir a consistência de uma pedra. O poema que intitula a obra
traz lições que falam muito sobre sua linguagem seca e objetiva, criando um elo
com a dura realidade do Nordeste. Realidade árida, ser humano árido.
Da obra poética de João Cabral, ainda se pode mencionar O cão
sem plumas (1950), O rio (1954), Museu de tudo (1975), Auto do frade (1986),
entre outros. João Cabral passou os últimos anos da vida mais recluso em um
apartamento no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Chegou a produzir cinco
livros nessa época, bem menos explorados pela nova geração de poetas - que
evitavam seu formalismo - e pelos críticos.
Em carta de abril de 1984, para o editor Daniel Pereira, João
Cabral escreveu: "Gostaria, francamente, que se esquecessem de minha
existência como escritor. Isto é, gostaria que a gente de hoje antecipasse o
esquecimento que virá para a minha poesia dentro de breves anos". Foi uma
das vezes que, já recluso, o engenheiro se equivocou. A obra de João Cabral
está sendo amplamente revisitada. Estão previstos um livro de entrevistas de
Ivan Marques (que já é autor da biografia do poeta), uma fotobiografia de
Eucanãa Ferraz e dois exemplares reunindo a obra completa na poesia e os textos
em prosa.
Uma coletânea bilíngue (português e espanhol) de poemas será
lançada na Feira do Livro de Quito, no Equador. O autor também será homenageado
no 9º Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), em Minas Gerais, em julho. A
pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou conteúdo inédito no acervo do
autor na Fundação Casa de Rui Barbosa, que ainda está sendo analisado - mas
cerca de 40 poemas já foram confirmados como inéditos e outras novidades podem
surgir. A editora Alfaguara, detentora dos direitos autorais de Cabral, finaliza
os trâmites para relançar as obras.
FONTE: DIÁRIO DE PERNAMBUCO
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