A GAMELEIRA
AMALDIÇOADA
Jô Drumond
Era usual, no sertão
mineiro, a organização de reuniões para audição de literatura oral,
principalmente nos finais de semana. Em meados do século passado, Xibiu, um
famoso contador de causos, era sempre convidado pelos fazendeiros dos arredores
a contar suas lorotas. Formava-se uma pequena plateia que, muitas vezes,
atravessava horas sem perceber o fluir do tempo, presa ao fio narrativo.
Esse contador de
histórias tinha o dom da eloquência. Associava intuitivamente o volume, a
entonação da voz e a mímica à narrativa, de modo a causar comoção. Xibiu
sentia-se poderoso ao ter diante de si uma plateia seleta, manipulada a seu
bel-prazer. O público, já predisposto, extasiava-se com facilidade, ao sabor
das aventuras e dos mistérios. É lamentável que a maioria dessas histórias se
tenha dissipado na poeira do esquecimento.
Em minha última ida ao
sertão, em 2019, tive o privilégio de ouvir um dos “causos” que ele contava,
antes de sua única viagem sem volta, com destino provável, onde deve estar
fazendo a alegria dos querubins, serafins e ofanins.
Era uma vez, em uma
encruzilhada não muito distante, uma grande Gameleira, debaixo da qual, nenhuma
erva brotava. Os habitantes da circunvizinhança diziam que a terra ali era
estéril porque aquela árvore era amaldiçoada. Debaixo dela, à meia-noite, os
demônios se reuniam para dançar e fazer festa. Diziam também que, se alguém
quisesse fazer algum pedido à entidade demoníaca, naquele local e naquele
horário, seria prontamente atendido. Ninguém nunca tinha tido o desplante de se
aproximar do satânico festim.
Havia nas redondezas
um velho apelidado de Papudo ou Zé do Papo, que carregava, com constrangimento,
um grande bócio. Um aprendiz de doutor, vindo da cidade grande, disse-lhe que
aquela protuberância nada mais era que o aumento da glândula tireoide,
ocorrente em regiões montanhosas ou distantes do mar, devido a problemas de
absorção e fixação de iodo no organismo. Acrescentou que, para evitar esse e
outros tipos de anomalias congênitas, a vigilância sanitária exigia a adição de
iodo ao nosso sal cotidiano. Mencionou a possibilidade de uma cirurgia. Isso
seria quase impossível. Zé do Papo nunca tinha botado os pés fora do sertão.
Desconhecia as gentes e os hábitos estranhos da cidade. Além disso não dispunha
de meios pecuniários para tal façanha.
Desacreditava a
história da Gameleira, mas, certo dia, cansado de ser motivo de deboches,
resolveu tirar a história a limpo. O fato é que o peso das pilhérias pesava
mais que o papo. Como se diz no sertão, ele “comprou coragem” durante um bom
tempo e, mesmo assim, meio temeroso, lá se foi, em direção à gameleira, em
noite de lua nova. De longe avistou claridade, debaixo da árvore e começou a
ouvir os sons da noitada demoníaca. Aproximou-se com humildade e pediu, com
grande modéstia, que o livrassem daquele incômodo que o acompanhava havia muito
tempo. Os demônios se apiedaram do pobre coitado. Num passe de mágica, seu papo
apareceu pregado no tronco da árvore. Papudo passou a mão pelo pescoço para se
certificar. Mistério!!! Não era simples crendice. Voltou despapado para casa,
para espanto geral. A notícia correu por trilhas e veredas, sertão afora. Outro
papudo, sabedor do ocorrido, resolveu fazer o mesmo. Porém, diferentemente do
primeiro, chegou pisando firme, de nariz em pé, com ares arrogantes, dizendo
com altivez, que, como haviam tirado o papo do outro, que tirassem o seu
também. Os capetas não gostaram de sua petulância e decidiram dar-lhe a
merecida lição: tiraram o papo colado na árvore e o colocaram na cacunda do
forasteiro, que voltou descabriado, com um papo na frente e outro atrás.
Moral da história: nem
o capeta tolera petulância. Todos devem ser tratados com educação e delicadeza.
Disseram-me que Xibiu
narrava a festa e a dança demoníaca com profusão de detalhes, prendendo a
atenção de todos com mímica e impostação de voz. Nunca teve acessos a livros,
nem ao saber convencional, mas carregava muita sabedoria nos bolsos da vida.
Aplicava-se na arte de encantar e de conduzir os ouvintes a universos nunca
dantes vislumbrados. Apesar de jamais ter-se deslocado do sertão, era o guia
perfeito para grandes viagens míticas.
Nota: A gameleira é
considerada sagrada na África, sobretudo em Angola, onde se cultua o orixá
Irokô, também conhecido como Tempo. Nos recônditos do Brasil ainda há
resquícios dessa crendice. Há rituais e diversos trabalhos de encantamentos
feitos ao pé da gameleira branca ou fícus doliaria.