Artista Espedito Seleiro é
homenageado com o Troféu Sereia de Ouro
Com vida e obra abraçadas pelo couro, Espedito Seleiro é referência desse artesanato sertanejo | Foto: Thiago Gadelha
O cientista Fernando de Mendonça, a
desembargadora Iracema do Vale e o médico Sulivan Mota também recebem a comenda
do Sistema Verdes Mares, na sexta-feira (27), no Theatro José de Alencar
Desde criança, Espedito Velozo de Carvalho acorda antes de o
sol raiar. Aprendeu com o pai e o avô, vaqueiros e seleiros desses que
despertavam às 3h da madrugada, colocavam o café no fogo e serviam à família
antes de iniciar o trabalho na fazenda. Após tanger o gado, cuidavam em fazer
peças de couro, atividade que o artesão começou cedo a reproduzir.
O primogênito de Raimundo Pinto de Carvalho e Maria Pastora
Veloso "nasceu com uma estrela" e dela nunca se desgarrou. Prova
disso é o título de mestre com o qual é reverenciado dentro e fora do Brasil,
em virtude da habilidade artesanal desenvolvida nestas quase oito décadas de
vida.
"Como eu tenho sangue de seleiro, o meu pai fazia um
chapéu grande para usar no dia a dia, e eu um menor, um chaveiro ou um
enfeitinho qualquer. Ele construía um baú grande, e eu aproveitava os
pedacinhos de couro para fazer uns pequenininhos, ali com ele, malinando em
cima de uma mesa. O primeiro baú, aliás, eu fiz com 8 anos, dei pra minha
mãe", lembra o artesão, conhecido como "Espedito Seleiro".
Natural de Arneiroz, no sertão dos Inhamuns, ainda criança
mudou-se para Nova Russas, onde ficou até os 10 anos de idade. De lá, a família
já crescida seguiu para Nova Olinda, no Cariri cearense. Até que no ano de
1958, em meio a uma seca que assolou o sertão, o filho mais velho, Espedito,
foi tentar a vida nos cafezais paulistas.
Trabalhou por dois anos "nas terras do sul" e
quando voltou para Nova Olinda, abriu uma bodega onde vendia "tudo em
secos e molhados" e também a primeira sapataria, a fim de dar continuidade
ao ofício ensinado pelo pai.
"Só que eu era novo demais e pensava que o mundo todinho
era meu, aí comecei a brincar muito, farreei que nem um jegue e findei
quebrado. Acabou o dinheiro, e a caderneta ficou cheia de conta pra receber. Se
eu ia atrás de cobrar, o cara queria pagar era com briga. Aí não dava certo.
Vim aqui pra dentro da rua, sem nada. Só com uma mulher buchuda", relata,
referindo-se ao local que hoje é ocupado pela casa, loja, oficina e ainda pelo
Museu do Ciclo do Couro, espaços construídos com o suor e a história da
família.
Espedito Seleiro herdou
do pai e do avô a habilidade com o couro | Foto: Thiago Gadelha
PRODUÇÃO
Espedito tinha 21 anos quando conheceu a esposa, Francisca de
Brito Carvalho. Da união, nasceram nove filhos, mas somente seis sobreviveram.
Para enfrentar as dificuldades, o casal recorreu novamente ao couro. "Eu
fazia a peça, e ela costurava na máquina ou na mão. Aqui, tinha vaqueiro por
todo canto, sabe? Aí eu fazia mais era sela e as roupas de couro, que era
gibão, perneira, chapéu, luva, guarda-peito. O primeiro gibão que eu fiz, eu
não tinha muita prática. Botei as mangas ao contrário", conta, ao mesmo
tempo que ri da própria inexperiência.
Foi nesse período que ele recebeu uma encomenda desafiadora
de um cigano da região. O homem, um dos Feitosa dos Inhamuns, queria uma sela
diferenciada, que o destacasse frente aos demais.
Espedito aceitou a proposta, mesmo não estando certo do que
poderia oferecer. Então, lembrou das cores. Fez o couro ficar marrom a partir
da interação com a planta nativa angico; preto, após imersão na lama; branco,
com a cinza da catingueira; e vermelho, com a base do urucum.
"O cigano ficou satisfeito, e o povo que viu ficou todo
admirado. Aí eu peguei o nome de 'Seleiro bom'. Os cabras diziam: menino, eu
vou mandar Espedito Seleiro fazer uma sela pra mim, porque ô bicho que trabalha
bem. É bonita a sela que ele faz", recorda, orgulhoso do próprio feito.
Em 1971, o artesão teve de lidar com a perda do pai. Trouxe
para perto de si a mãe e os irmãos, e ensinou a eles, aos próprios filhos e,
mais tarde, a dois dos cinco netos, o saber ancestral para garantir a todos o
ganha-pão.
Nos anos 1980, porém, o mercado começou a decair,
especialmente quando as funções do vaqueiro e do tropeiro foram perdendo força,
e os ciganos já não circulavam como antes. Nem mesmo as feiras - Araripe, no
sábado, Potengi, no domingo, e Campos Sales, na segunda - estavam dando o
retorno, o que exigiu de Espedito uma renovação.
TRANSFORMAÇÃO
"É o seguinte: eu não vou parar de trabalhar com couro,
porque é o que eu aprendi na vida. E eu não vou parar por três coisas: uma
porque eu preciso de dinheiro. A segunda é que eu não sei trabalhar com outro
movimento e, por fim, porque eu quero manter a tradição da minha família. Vou
tentar e a partir de hoje, eu vou criar um estilo meu, que aonde eu chegar, o
cabra pode é não comprar, mas fica com vontade. Vou criar um modelo, que Deus
vai me ajudar e vai dar certo", desabafou com a esposa Francisca.
Aproveitou uma madrugada dessas e amanheceu com os moldes
feitos. As cores, que antes se restringiam às selas, passaram para as sandálias
e gibões. Esboça-se ali o futuro da família de seleiros, cujo passado jamais
seria esquecido, visto que a mesma matéria-prima seguiria alicerçando a
tradição.
Nos anos 1990, Alemberg Quindins, idealizador da Fundação
Casa Grande, com sede em Nova Olinda, abriria a porta da oficina para o
universo. Encomendou a Espedito uma "sandália de Lampião". Outra
pessoa a iluminar o caminho foi a socióloga e secretária de Cultura do Ceará,
Violeta Arraes (1926-2008).
Depois de ganhar uma alpargata vermelha de "Maria
Bonita", ela resolveu encomendar uma bolsa ao artesão. Esses dois pares de
pés viajantes levaram a estética do couro por todo o Brasil e parte do mundo.
"Foi quando eu fiquei mais conhecido. Alemberg me ajudou
muito mostrando essa sandália dele, e dona Violeta Arraes também, que levava
pra dar de presente aos artistas", comenta.
Nos anos 2000, veio o primeiro chamado para a fama. O artesão
teve peças incluídas no figurino do filme "O Auto da Compadecida", do
diretor Guel Arraes. Em 2005, criou calçados e acessórios para o desfile da
Cavalera (Verão 2006) na São Paulo Fashion Week (SPFW), marcando sua estreia na
principal vitrine de moda brasileira. Na ocasião, Espedito assistiu ao desfile
sentado em lugar de destaque na passarela, ao lado da esposa, dona Francisca, e
do filho, Maninho.
O reconhecimento lá fora acompanhou o desenvolvimento aqui
dentro. Em 2008, foi agraciado com o título de Mestre da Cultura Tradicional
Popular do Ceará, concedido pelo Governo do Estado por seus relevantes serviços
prestados à cultura e à arte; em 2011, recebeu a Ordem do Mérito Cultural,
conferida pela Presidência da República Federativa do Brasil, pela sua
contribuição à cultura brasileira. Das Universidades Estadual e Federal do
Ceará, ganhou ainda o título de notório Saber em Cultura Popular, nos anos de
2016 e 2019, respectivamente.
Uma das peças da Coleção Cangaço (2015), desenvolvidas pelos
irmãos Fernando e Humberto Campana em parceria com Espedito
PARCERIAS
Como era de se esperar, o sucesso atraiu novos parceiros. Com
os irmãos designers de renome internacional, Fernando e Humberto Campana,
Espedito desenvolveu peças para a coleção Cangaço, a exemplo de armários,
cadeiras, sofás e mesas de centro. O trabalho ganhou destaque na feira Design
Miami, realizada em dezembro de 2015, nos Estados Unidos.
No mesmo ano, recebeu convites para desenvolver modelos
exclusivos para as marcas cariocas Farm e Cantão. Nas visitas que os designers
de moda e estilistas passaram a fazer com frequência a sua oficina em Nova
Olinda, porém, o mestre sempre fez uma exigência: para fechar negócio, era
preciso manter a essência das cores e os corações em arabescos, que ele havia
internalizado no contato com a cultura cigana.
"A pessoa que quiser parceria comigo, tem que fazer o
que eu gosto e o que eu sei. Comigo é assim. Se for para fazer um desenho
baseado em você, eu não sou Espedito Seleiro. Me perdoe, mas não vou fazer o
que eu não sei, trabalhar com traço de ninguém. Eu aprendi e foi Deus quem me
ensinou. Eu não tive escola pra isso e eu não preciso também, o que eu faço é
assim", observa.
Com essa segurança sobre a própria personalidade, o artesão
protagonizou documentários, teses de mestrado, livros e cordéis; suas peças
ganharam destaque em filmes, novelas e passarelas. Mais recentemente, em
fevereiro deste ano, o criador também atravessou o Atlântico para apresentar
suas peças na Embaixada do Brasil, em Londres; e cruzou a Marquês de Sapucaí,
em março, num carro alegórico da Escola de Samba "União da Ilha do
Governador", cujo enredo de 2019 era "A Peleja Poética entre Rachel e
Alencar no Avarandado do Céu". Uma ala de brincantes vestidos com seu
artesanato em couro também marcou a homenagem no Rio de Janeiro.
"Nunca pensei de ficar conhecido. Isso acontece de
supetão, de uma vez, né? Às vezes, eu não tô nem esperando, aí acontece. Foi
assim com o Troféu Sereia de Ouro", revela, sobre a comenda que receberá
do Sistema Verdes Mares. "Eu acho legal pra todos nós que vamos ganhar
essa homenagem. Isso dá mais valor às pessoas e tenho que agradecer a Deus e
aos amigos que reconheceram, que me deram esse merecimento", afirma, certo
da importância de figurar a partir de agora nesse grupo seleto de cearenses
ilustres.
EXPEDITO SELEIRO
Nesta 49ª edição, além do artista Espedito Seleiro, serão
agraciados com o Troféu Sereia de Ouro o cientista Fernando de Mendonça, a
desembargadora Iracema do Vale e o médico Sulivan Mota.
Fonte: Diário do Nordeste: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/artista-espedito-seleiro-e-homenageado-com-o-trofeu-sereia-de-ouro-1.2153476
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